22 de outubro de 2007

Manuel


Manuel, é um nome muito português. Não quero dizer com isto que não existam outros nomes tão portugueses como este, se os há! Olha os Josés, os Antónios e por aí...

Nasceu no Norte há já alguns anos, filho de pais pobres, a mãe vivendo daquilo que conseguia que a terra desse e o pai, além de ajudar a mulher no campo, era um operário simples de uma fabriqueta que existia por ali perto que de fábrica, praticamente só tinha o nome.

Quando os pais do Manuel casaram toda a aldeia viveu aquele casamento. Já durante o namoro, muitos eram os que espreitavam por detrás dos postigos para ver se se apercebiam de uma piscadela de olho ou de um toque mais atrevido. Mas não, a mãe do Manuel, menina séria e muito dada a re­catos, sempre tinha feito um namoro lindo e com respeito, como corria na aldeia.
Aquele casamento foi falado por muito tempo. Os avós do Manuel, de ambos os lados, "fizeram das tripas coração" para que ele não fosse esquecido nos tempos mais próximos.

Os pais do Manuel casaram e, passados uns tempos, surgiu o Manuel da nossa história. Nessa altura, só a mãe sabia da sua existência. Aqueles enjoos pela manhã! Aquelas tonturas! Seria o que ela es­taria a pensar?

Ao fim de muitas noites em claro, lá se resolveu a ir falar com a mãe e contar-lhe o que sentia. Fo­ram-lhe, então, tiradas algumas dúvidas, muito por meias palavras, muito a dar a entender.
- Estou grávida! – pensou a mãe do Manuel – Que vergonha! – acrescentou.

É verdade! A mãe do Manuel, senhora casada, devido à educação que tinha levado, envergonhou-se. Aquilo que lá na terra era vulgar para as cabras, porcos e cães, era vergonha para os homens.

Toda a aldeia devia saber como os bebés se faziam. Todos os homens e mulheres casados já tinham tido filhos. Chega-se então a uma conclusão: ter filhos é alegria. E fazê-los?!...

Escondeu do marido até não poder mais. O seu corpo começou a preparar-se para a vinda do Ma­nuel. O enxoval começou a fazer-se. Já não podia esconder mais e então, a notícia espalhou-se pela aldeia como fogo em dia de Verão.

O tempo foi passando, o Verão custou a aguentar. Tanto calor! O Outono chegou, o peso foi au­mentando, a lida da casa já ia custando, a do campo, ainda mais. O frio começou a aumentar, os dias a ficarem pequenos, as noites maiores. O calor da lareira era agradável.

Numa dessas noites frias de Novembro, o Manuel manifestou-se, ouviu-se o seu primeiro vagido, ouviu-se o seu primeiro choro.

Sua mãe, cansada, estava rodeada pelas mulheres experientes da aldeia, mulheres para quem aquela cena já não tinha nada de novo, era o pão nosso de cada dia.

Chegaram-lho ao peito:
- É um rapaz perfeito!! – ouvia a mãe do Manuel.
Outra voz mais afastada:
- O rapaz é pequenito, mas cá se faz. Assim o leite dela seja bom, depois, tudo se cria.

E o pai do Manuel? Esse, coitado, quando tudo começou, ficou tão aflito ao ver a sua companheira cheia de dores mas, as mulheres puseram-no fora:

- Vá-se embora, compadre. Esta é das poucas vezes que o galo não tem ordem de entrar na capo­eira.

E ele lá se foi, debaixo de chuva e vento, procurar os companheiros para ver se o tempo passava mais depressa e se a sua mulher se via livre de tanta aflição.

Dizia ele para os outros, para se mostrar forte:
- Ela é rija! É uma mulher de armas! Vocês vão ver!

Mas, lá por dentro, o coração estava tão pequenino. Mulher corajosa, isso era! Mas, tanta dor!

Já a noite ia alta e vai a ti'Carolina à procura do pai do Manuel. Bate à porta deste, bate à porta da­quele. Nada dele! Até que, um dos amigos de conversa lhe disse:

- Despediu-se inda há pouco e foi p'rás bandas da Igreja.
Lá foi ti'Carolina lá para as bandas da Igreja e, quando entrou, logo o viu a conversar com o padre, na sacristia.

- Oh! Senhores, venha, já lá tem um rapaz!!

O tempo foi passando e o nosso Manuel cresceu, fez-se rapazito, em idade de andar na escola, já tinha mais dois irmãos, uma rapariga e um rapaz. Este último ainda bebé.

Na escola encontrava os amigos com quem brincava e ia aos ninhos por aqueles campos fora. Só eles sabiam em que árvore é que havia os bons paus para fazer fisgas, mais além eram as tocas dos coe­lhos. Só eles conheciam os recortes daqueles montes a qualquer hora do dia. Junto ao rio, belos ba­nhos! E as armadilhas para apanhar peixes... Que belas pescarias!

A professora dizia ao pai que o rapaz era esperto, que tudo aprendia e tudo queria saber.

O seu pai inchava de orgulho mas não o demonstrava.

O tempo foi passando. A escola primária acabou.

- E agora p'ra onde vai o rapaz? – dizia o pai.

- Trabalhar para o campo não. A D. Adosinda diz que ele é esperto. Não gostava que ele tivesse a vida que nós temos tido. Queria para os nossos filhos um futuro bonito. Aconselha-te com o senhor prior. Vê lá o que é que ele acha.

Assim fez o bom pai do Manuel, e a conversa foi tal que, depois de se perguntar a opinião da senhora professora, o Manuel deu entrada no Seminário.

Ficou longe da aldeia, da família, dos amigos. Só os via nas férias. Tempos difíceis!

O tempo passava e o Manuel cada vez desejava com mais ansiedade a chegada das férias para voltar para a sua aldeia, para os seus.

Durante o ano só havia umas raras cartas, muito vagas porque o tempo era pouco e o treino para escrever não muito grande. E o Manuel lá se contentava. Lia e relia com sofreguidão, a meia dúzia de linhas mal alinhavadas mas a dar a entender que também desejavam o regresso.. E aí, o Manuel chorou, pela segunda vez.

O Manuel foi crescendo naquele Seminário escuro e húmido, foi estudando, fez amigos, grandes companheiros de noites de cavaqueira, à luz da vela, quando todos os outros já dormiam, trocavam-se opiniões sobre o que se ouvia, sobre o que se lia e o Manuel foi mudando até que, numas férias, que eram há muito tempo desejadas, quando chegou à aldeia, começou a notar que ele já não per­tencia ali, que a única coisa por que voltava era a família. Os amigos com quem costumava brincar quando miúdo ou estavam a trabalhar no campo, ou na fábrica, ou tinham saído da aldeia.

Tomou, então, uma resolução, ir experimentar os campos de férias que, durante o ano, no Seminá­rio, tanto ouvira falar.

E foi assim que o Manuel começou a conhecer o nosso Portugal, acompanhando miúdos mais novos, um ano no Alentejo, outro na Beira, outro no Ribatejo, convivendo com outras gentes, outras ideias, outras paisagens. E foi feliz!

Às vezes, nas férias, tinha que trabalhar no duro para ter algum dinheiro para qualquer coisa que quisesse comprar.

Quando as férias acabaram o Manuel voltou ao Seminário, agora já rapaz feito, com alguma barba a crescer e a maioridade a chegar.

Sentia-se deslocado naqueles corredores onde lhe eram ministradas aulas e onde surgiam certas ideias com que ele, de modo nenhum, podia concordar. Manifestou-se. Que resultados viu? Não havia meio termo, ou contra ou a favor. Quem contra? Quem a favor? Mas ainda poderá haver gente con­tra ideias tão claras, tão lógicas? Porquê? Não entendia, só sabia que não era aquilo o que ele queria.

Num Natal, ao chegar à sua aldeia, todos os aguardavam como de costume, os sorrisos habituais, os abraços habituais, a missa do galo habitual, o capão habitual mas, depois da ceia habitual, o Manuel desabafou:

- Pai! Não quero ser padre.

O tempo parou.

Naquela casa a angústia surgiu. A mãe viu desaparecerem os sonhos que tinha alimentado durante anos. Já não ia ver o seu filho celebrar missa na igrejinha da aldeia. O seu filho tinha aprendido a tocar viola no Seminário e ela tinha uma viola escondida para lhe dar como prenda de Natal. Ele ainda não sabia. Tinha pedido ao seu homem para ir à cidade comprá-la. O que ele tinha corrido! Quando gostava de uma, o dinheiro que levava não chegava, quando encontrava uma de bom preço, havia qualquer coisa que não o levava a comprar.

Já tinha imaginado o seu Manuel, já padre, ao Domingo, rodeado pelas crianças da escola a ensinar-lhes as cantigas bonitas para eles cantarem na missa.

O pai ficou calado, a cozinhar aquilo que tinha ouvido. Levara algum tempo a mentalizar-se que ia ter um filho padre, sem se casar, sem lhe dar netos, mas já se tinha habituado à ideia, agora, num lapso de tempo, tudo tinha mudado.

- E o que é que pensas fazer?

- Vou acabar o liceu, no Seminário e depois, vou pensar no curso que me agrada. Pode ser que tenha que ir para mais longe, ainda não sei.

O tempo continuou a correr e, ao acabar o liceu, o Manuel resolveu ir tentar a sua sorte na grande cidade. Ele que sempre tinha vivido entre claustros, entre os homens, entre crianças, vê-se, de re­pente, rodeado de barulho, confusão, competição, tudo aquilo que tinha ouvido contar, que tinha lido em alguns livros, no Seminário, passados pela porta do cavalo.

Tinha feito muitos amigos, quer entre alguns professores, quer entre os companheiros. Casas religio­sas há por muitos lados e foi numa delas que ficou quando se encontrou em Lisboa.

O ritmo de vida era completamente diferente. Ao princípio assustou-se. Estaria preparado? Toda a sua vida a passara dentro de uma redoma, uma sociedade de elite completamente diferente e que, embora não concordasse com ela, na sua globalidade, ela tinha deixado as suas marcas na sua ma­neira de ser, de sentir, de pensar.

Resolveu trabalhar e tirar o seu curso à noite. Usou as boas bases musicais que tinha tido no Seminário e foi trabalhar como professor de educação musical num colégio. Era esse o nome que usava mas era um bocado o topa a tudo. Homem habilidoso, esperto, nada o deixava atrapalhar. Foi lutando, foi subindo, foi estudando, foi vingando a punho mas também foi convivendo.

Tinha o seu grupo de amigos de curso, de conversa, de folia, rapazes e raparigas da mesma idade, com ideias muito semelhantes, maneiras de pensar idênticas. Entre os que acompanhavam esse grupo havia uma rapariga linda, agradável, graciosa, com quem começou a gostar de falar, de convi­ver, de se dar, de receber.

O amor nasceu, o espanto, o encanto, a emoção. Foi tudo tão rápido, tão lindo, tão natural e teve como final o casamento. Tanta alegria, tanta novidade por explorar, tanta ternura para dar. O tempo foi passando e o Manuel preparou-se para ser pai. Nasceu uma criança linda que ele logo adorou mas, entretanto, a luta pela vida complicou-se.

A família estava formada, o curso por concluir, o filho a precisar de atenção e a mulher também, o curso a chegar ao fim, os exames por fazer, os livros para ler, as teses para apresentar e o tempo a escoar, a incompreensão a surgir.

Os diálogos amenos, saudáveis e bons de antigamente foram-se espaçando cada vez mais, as trocas de impressões agradáveis, os longos serões, transformaram-se em conversas cordiais, informais mas que não lhe davam todo o carinho e ternura de que ele tanto precisava.

Que vou fazer? Tenho um filho a quem adoro, mas não sou daqui, não sou feliz, sinto-me mal.
E, pela terceira vez, o Manuel chorou.

3 comentários:

Unknown disse...

Quem é este Manuel?

COnheço de perto este sentimento.
Adorei. Obrigado

20visitar disse...

Este Manuel é uma pessoa que eu considero amiga e 50% do que aqui está foram migalhinhas que foram surgindo das nossas conversas até às 4 da manhã há alguns anos atrás. O resto foi invenção minha.
De qualquer modo fico muito contente pela visita. Gostei que tivesses gostado. Aparece mais vezes.

Anónimo disse...

O Manuel,é um de muitos decerto. Mas aqui o importante é a forma
como a história é contada.Parabéns. América