22 de outubro de 2007

Fernando Pessoa


Excerto de "O guardador de rebanhos" - Poema VIII de Fernando Pessoa

Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus descer à Terra
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se ao longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
da segunda pessoa da Trindade
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez, homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa, toda à roda, de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça
E até com um trapo à volta da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José que era carpinteiro
e que não era pai dele
E o outro pai era uma pomba estúpida
a única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo, nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu
E queriam que ele que só nascera da mãe
E nunca tivera pai para amar com respeito
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três:
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que tinha fugido,
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino,
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-se pregado na Cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois, fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo
É uma criança bonita, de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as,
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge, a chorar e a gritar, dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas à cabeça,
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo:
Ensinou-me a olhar para as coisas,
Aponta-me todas as coisas que há nas flores,
Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz muito mal de Deus
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
das coisas que criou"
Se é que ele as criou, do que duvido -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada
E por isso se chamam seres.
E depois, cansado de dizer mal de Deus
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o, ao colo, para casa.
Quando eu morrer, filhinho
Seja eu a criança, o mais pequeno,
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do Menino Jesus
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

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