28 de dezembro de 2008

Lenda da que mal pica

Lendas de Portugal segundo Gentil Marques
Chegara o Inverno. E com ele o frio. E com ele a desolação. Em certa zona das Beiras, lá para o sul de Castelo Branco, havia um pequeno povoado onde vivia Aninhas, uma rapariguinha de ar aciganado, que punha tentações nos olhos dos homens.
Ora, uma noite, parou ali um emproado fidalgo, que se dirigiu sem demora, ao chefe do povoado.
- Maldito frio!... Acendei-me a lareira, depressa!... Depressa!... Não ouvis, velho imbecil?
Mas o outro era velho, de facto. E a muita idade não lhe consentia pressas...
- Vou já meu senhor, vou já... Nós também temos muito frio...
Altivo, arrogante, o fidalgo olhou o velho de alto a baixo, num ar de soberano desdém.
- Que me interessa o vosso frio? Quero apenas que se cumpram as minhas ordens, nada mais... Compreendeis? Sou eu o dono de todas estas terras!
E quedou-se, soberbo, no meio da sala.
Foi então que, atraída pelo volume e pela força das palavras, surgiu Aninhas, a neta do velho chefe do povoado.
- Deixe lá, avozinho. Eu vou tratar de tudo...
E sem olhar o outro sequer, acrescentou num ar de mal contida ironia.
- Este senhor fidalgo, certamente, vem muito apressado... e muito friorento... Coitadinho!
O visitante voltou-se para ela, surpreendido e desconfiado.
- Onde estavas escondida?... Ainda não te tinha visto...
Avançou, sorrindo, a tentar ser lisonjeiro.
- Que lindo palminho de cara tu tens...
E quis fazer-lhe uma festa. Mas a rapariga fugiu-lhe habilmente.
- Tire s mãos, senhor fidalgo... Olhe que pode sujá-las na minha cara...
Ele disfarçou a contrariedade com uma risada.
- Já vejo que és de força... Mas isso agrada-me, pequena... Estou habituado a domesticar as minhas éguas bravas...
Aninhas fingiu que não ouvia. Limitou-se a apontar para as chamas que começavam a crepitar.
- Pronto... A lareira já está acesa, senhor fidalgo... Pode chegar-se, para se aquecer...
Esquivou-se de novo à aproximação dele, e aconselhou, num tom meio sério, meio gaiato:
- Cautela com o fogo, senhor fidalgo, cautela...
Espicaçado no seu brio, o altivo e desdenhoso fidalgo deixou-se ficar por ali mais uns dias, cortejando a bela e esquiva Aninhas.
- Posso fazer de ti uma rapariga rica e feliz...
A rapariga riu-se:
- Ora, feliz já eu sou... E rica não preciso de o ser...
E ele aproximou-se mais e segredou-lhe:
- E se eu te raptasse... se fugíssemos para o meu palácio em Lisboa?...
Aninhas pôs-se subitamente séria.
- Creio que o melhor é não tentar, senhor fidalgo...
O fidalgo empertigou-se:
- Falarei então com o teu avô... Ele será mais compreensivo... e mais esperto do que tu, concerteza!
A rapariga encolheu os ombros. De descrença, ou de indiferença mas, o fidalgo não hesitou e abalou, resoluto, decidido a levar por diante a sua vontade.
Enganou-se porém, redondamente. A sua proposta desagradou por completo ao velho chefe do povoado, que chegou mesmo a irritar-se.
- Como? Pois o senhor atreve-se? Não, nós não somos dessa gente que o senhor julga... Oiça bem: a minha neta só casará com quem ela quiser... E eu não a troco, senhor fidalgo ou lá o que é, eu não a troco por todo o oiro do mundo.
Arfando de emoção por ter ido tão longe nas suas palavras, o velho chefe terminou com um convite bem explícito:
- Porque não se vai embora daqui, senhor fidalgo?... Quanto mais depressa melhor!
O outro voltou a encher-se de soberba ofendida. Endireitou-se, muito solene e a sua voz esganiçou-se, de raiva:
- Pois então escuta, velho idiota: hoje mesmo, tu e a tua neta sereis expulsos destas terras, que são minhas... Vós é que vos ireis embora! Não vos quero ver mais na minha frente!
O velho percebeu que se excedera e que ficaria a perder pois o outro, além de mais forte e poderoso, já só tinha pensamentos de vingança.
Num reflexo de medo, exclamou com voz trémula:
- Oh, senhor!... Que será da minha neta e de mim? Para onde iremos nós? Não leveis tão longe a vossa crueldade.
Ao fidalgo enfurecido, tudo lhe parecia insulto e, ao ouvir a palavra crueldade, a sua fúria cresceu e deu um safanão no velho que caiu por terra mas, não contente com isso e para poder saciar a sua raiva ainda acertou nas costas do velho com o seu chicote.
Aninhas, atraída pelo barulho entrou e, ao ver esta cena, abriu os olhos de espanto, de piedade mas, ao mesmo tempo de ódio.
- Ah, fidalgo vilão, haveis de pagar caro a vossa ruindade!
Mas, desta vez, o fidalgo voltou-lhe as costas sem a olhar sequer. E as suas ordens soaram enérgicas e definitivas:
- Quero que esta gente abandone as minhas terras... hoje mesmo!... O velho, a rapariga e todos os seus companheiros. Não os quero ver mais aqui!... E se for necessário, empregar a força para os fazer partir.
Não foi necessário usar de violência. Todos abandonaram as velhas casas, nesse mesmo dia... Andaram muito, muito, segundo se diz, passaram fome e frio mas não renunciaram.
Um dia chegaram perto da Ermida de Nossa Senhora das Neves, estavam exaustos e, de comum acordo, resolveram ficar ali porém, outra calamidade lhes surgiu: uma praga de formigas!
O velho chefe, cada vez mais adoentado, foi o primeiro a confessar o seu desânimo.
- Oh, avozinho, não perca a fé!... Deixe lá. Temos de reagir, é preciso continuar a luta!
E voltando-se para os outros:
- Não podemos ficar aqui... Temos que procurar outro local. Desta vez, não seremos nós a procurar o local que nos interessa... Deixemos essa missão às nossas vaquinhas... Onde elas se sentirem bem, aí nós ficaremos para sempre!
Ao soarem as avé-marias na ermidinha distante, soltaram as vacas e deixaram-nas ir, à vontade pelos campos fora...
Conta-se que foi Aninhas a primeira a chegar ao local onde as vacas pastavam tranquilamente.
- Venham todos! Isto é magnífico... Parece um céu aberto!... Vejam como as nossas vaquinhas estão contentes... Sabem porquê? Porque aqui as formigas são bem poucas... E qualquer destas formigas, como podem ver, mal pica...
No meu do contentamento geral, a voz do velho chefe, que todos respeitavam, ergueu-se segura e profética:
- Pois já que assim é... esta nossa terra há-de ficar a chamar-se Malpica!

E desse modo nasceu na Lenda e passou à História a pitoresca e bonita aldeia da Beira baixa, que primeiramente se chamou apenas Malpica - e agora e chama Malpica do Tejo.
E consta ainda, na memória do povo, que o tal fidalgo atrevido e enfatuado veio a acabar de morte horrorosa, mordido e envenenado por umas formigas terríveis, que ninguém chegou a saber de onde tinham vindo...

16 de dezembro de 2008

XI - Força

Esta carta que aqui vos apresento, pertence ao Tarot da Esfinge de Silvania Alasia e publicado por Lo Scarabeo em 1998.
Rider Waite resolveu trocar a posição da carta da Força, com a da carta da Justiça, colocando esta na posição VIII e a Justiça na posição XI. Quando foi questionado para que contasse a razão desta troca, respondeu: "Por motivos que me satisfazem, esta carta foi trocada pela da Justiça que, geralmente, tem o número VIII".
Tanto Waite, como Paul Foster Case e Aleister Crowley colocaram a Força com o 8 e a Justiça como o 11, provavelmente seguindo a Ordem da Aurora Dourada cujo baralho secreto também tem estas cartas trocadas.
Não façamos julgamentos de situações que não conhecemos. É importante é entender o que nos transmite a carta da Força e a carta da Justiça.
A carta da Força baseia-se no segredo da profunda harmonia interior, há aqui uma reconciliação do homem civilizado com a sua natureza animal.
Esta carta apresenta uma mulher a abrir a boca de um leão apenas com as duas mãos. Ora, não seria pela força que a mulher conseguiria abrir a boca ao leão, seria sim, com inteligência, com coragem, com força interior, com o magnetismo pessoal, a compreensão mas nunca com força física.
Exercícios de Meditação com a carta "A Força":
Objectivos - Despertar a força interior e a coragem.
Este é o Arcano que nos mostra o impulso, a coragem, a força interior, o poder mental e o magnetismo que existe dentro de cada um de nós e que é capaz de vencer todos os obstáculos.
Procure um horário em que sabe que não será interrompido por ninguém. Desligue o telefone ou o telemóvel.
Sobre uma mesa coloque então a carta número XI, a Força. Se preferir, acenda ao lado um incenso, coloque uma música suave e relaxante.
Sente-se confortavelmente. Num papel escreva uma afirmação relacionada com o objectivo que pretende atingir, como por exemplo: "Eu guio a minha vida com coragem e determinação"; "Eu tenho a força necessária para vencer cada obstáculo da minha vida, transformando cada situação numa aprendizagem que aprofunda o meu discernimento e eleva o meu nível de consciência".
Pode segurar o cristal olho de tigre na sua mão. Inicie o processo de relaxamento, fazendo os exercícios respiratórios até se sentir relaxado e em paz. Feche os olhos, sinta a paz que o cerca, deixe-se envolver pelo aroma suave do incenso, deixe seu corpo relaxar mais e mais.
Abra os olhos e olhe atentamente para a carta A Força durante cerca de 3 minutos. Concentre-se apenas na imagem e deixe fluir o significado da carta, força, coragem, determinação.
Feche novamente os olhos para iniciar a visualização criativa.
Imagine-se numa praia de uma areia branca e um mar imenso, azul à sua frente. Sinta-se cada vez mais relaxado, caminhe por essa praia e entre na floresta que o cerca. Caminhe confiante. Ao longe, encontra um jardim muito bonito. Vá caminhando por ele, aprecie as flores e os seus aromas, o céu azul, o brilho do Sol, o canto melodioso dos pássaros. à sua frente vê um pequeno lago, ao pé do lago avista uma mulher muito bonita, vestida de branco, que passeia calmamente ao pé do lago. Ao seu lado, caminha um leão forte e jovem; ela domina-o com amor. Vá-se aproximando.
A jovem sorri-lhe, estende-lhe a mão e convida-o para um passeio pelo jardim. Aceite, aproxime-se do leão e da jovem e mantenha-se ao seu lado. Caminhe com confiança, deixe-se ligar ao leão; receba a sua energia.
Agora tem em si a força e a capacidade de dominar os seus medos, instintos e fraquezas. Não recue, a coragem está dentro de si, você será capaz de fazer as suas escolhas sem medo e com muito amor e respeito por si próprio.
Respire fundo, abra os olhos e volte a olhar para a carta A Força. Leia novamente as afirmações que escreveu no princípio do exercício. Coloque este papel ao pé de uma cama e todos os dias, ao acordar, releia as afirmações que escreveu, em voz alta.
Sempre que sentir necessidade, pegue na carta e olhe atentamente para ela durante uns minutos. Deixe-se encher da energia poderosa da carta A Força.
Afirmações (conselhos) para a Força
- Com a coragem e força interior, venço todos os obstáculos, confio e uso de toda a minha coragem.
- Eu sou a inteligência.
- Eu sou o sucesso.
- Eu sou o poder interior.
- Eu sou a harmonia e o equilíbrio.

Assim, sim

                                                         Destas touradas é que eu gosto. Os ginastas já sabem com o que contam, que dever ser semelhante aos aleijões que podem fazer em qualquer sarau de ginástica. E, se vão para lá é porque querem. Ninguém os obriga.
Apresentam assim, um trabalho gracioso, elegante e agradável aos olhos. Não se vê nada espetado no touro, pode só sair da arena cansado, mas espetado e sangrado, não sai de certeza e muito menos morto.
Depois de morto ninguém lhe vai cortar orelhas ou rabos para dar de prémio a quem andou ali a ferir o animal.
Ele (touro) quando foi para a arena não sabia o que lhe ia acontecer. Mas os homens que lá estavam, sabiam todos, o que estavam preparados para lhe fazer.
Não me venham cá dizer que o touro que é bravo, não sente... e sente a picada da mosca pois sabe perfeitamente ir ao sítio certo, enxotá-la com o rabo.
Isto era uma conversa que daria "pano para mangas" como se costuma dizer quando nos lembramos de aficcionados que mandam e-mails com "não abandone o seu cão, o seu gato..."
E pessoas que dizem que não gostam de touradas mas adoram caçar? Ainda não se aperceberam que o homem é o único animal (que se diz racional) que mata por prazer?
Por estas touradas apresentadas neste filme, torno-me aficcionada incondicional.

9 de dezembro de 2008

Lenda de Cegovim


Lendas de Portugal segundo Gentil Marques.
Ora aconteceu assim mesmo. Tal e qual como reza a história. Tal e qual como conta o povo. 
Nos seus primeiros tempos de casada com El-Rei D. Dinis, a jovem e formosa Rainha Dona Isabel - à qual chamaram mais tarde "Rainha entre as Santas e santa entre as Rainhas" - foi viver com a Corte para Leiria.
E ali, nesse cenário de sonho o tempo ia passando entre folguedos e jogos poéticos...
Dona Isabel era então ainda muito nova, mas já revelava o seu amor pelos pobres e pelos humildes, levando àqueles que sofriam a consolação duma palavra ou de um gesto. Em vez de ficar reclinada, como o rei, aspirando voluptuosamente o perfume das flores - ela empregava o tempo visitando os que mais precisavam do seu auxílio. E foi no caminho duma dessas visitas que, certa manhã, encontrou nas voltas de um atalho um mendigo leproso, sujo e repelente.
Mal o viu, o homem afastou-se instintivamente. Mas pediu, com voz trémula:
- Senhora, atirai-me uma esmola... porque eu morro de fome e de cansaço.
Ia só, a Rainha. Contudo, nem por um instante sequer hesitou em parar. E parou, e perguntou, com ternura:
- Donde vindes, pobre homem? Pareceis-me bem doente... Aproximai-vos...
Todavia ele não se aproximou. Antes, pelo contrário, recuou. Mais e mais.
- Não, senhora, não... Isso não!... Não sei quem sois... mas não me toqueis!... Bem vedes... A minha doença é praga maldita que não perdoa a ninguém.
Dona Isabel suspirou. A miséria humana atormentava-a tanto, tanto... Ah, se ela pudesse!...
- Parai, pobre velho... Fugis, para quê?
- Para não vos pegar o meu mal, senhora... Já vi que sois boa!
E o mendigo fazendo alarde das suas últimas forças, procurava afastar-se o mais rapidamente possível... Porém, as pernas fraquejaram e ele caiu de borco no chão poeirento. Sem hesitar, Dona Isabel correu para junto do velho.
- Estais ferido?
- Oh, senhora, por quem sois, rogo que vos afasteis!... Sinto-me morrer aos poucos... mas fugi, fugi de mim!... Eu sou maldito!
- Não sejais tonto, pobre homem... Vinde comigo!
E perante o olhar estupefacto do velho mendigo, a Rainha acrescentou, numa voz meiga mas sem réplica:
- Amparai-vos ao meu braço!
Apenas um gemido saiu dos lábios trémulos do homem. mas já ela, segurando-o e amparando-o, lhe dizia, sempre a sorrir:
- Podeis fazer força... O meu braço também é forte...

E assim andaram algum tempo. Estranho par, na verdade! Pelo atalho cheio de pedras e de poeira, um velho mendigo, leproso arrastando-se encostado ao braço duma rainha!
Enquanto andavam, Dona Isabel sentia que a vida dele se estava a extinguir, pouco a pouco... Sim, o mal do pobre homem, além da lepra que o devorava implacavelmente, devia ser fome... Uma fome terrível, decerto... E era preciso salvá-lo!
De súbito, parou. Olhou em redor. Sentiu-se aturdida, desorientada. E, sem que o velho a pudesse escutar, rezou.
- Oh, meu Deus!... Ajudai-me! Não vejo o que possa dar a este pobre homem... A não ser... A não ser estas pequenas amoras que aqui estão perto de mim... Mas as amoras não matam a fome...
Fez uma pausa. Os seus olhos prenderam-se mais às amoras. Teve um sopro íntimo de inspiração.
- Quem sabe? O poder de Deus é grande, é infinito!... Quem sabe se Ele não pôs as amoras no meu caminho... apenas para me experimentar?
E sem mais hesitação colheu uma mão cheia de amoras e deu-as ao velho mendigo.
- Tomai... Tomai nas vossas mãos... Comei estas amoras!
Espantado, indeciso, arfando de cansaço e de emoção por tudo o que lhe acontecia tão inesperadamente, ele ainda perguntou:
- Achais que eu possa comer estas amoras... senhora?... No meu estado?...
Prontamente, a Rainha respondeu:
- Podeis, sim!... Podeis e deveis... Confiai na vontade de Deus!
Embora sem grande entusiasmo, o mendigo foi comendo devagar as amoras que a Rainha lhe oferecera... E à medida que as comia, decerto por efeito sobrenatural, ganhava novas energias, sentia-se mais forte.
- Senhora! Senhora! Isto é um milagre!... Quem sois vós senhora?
E endireitava-se já sem necessidade de se apoiar ao braço da Rainha. Desaparecera o cansaço por completo. Restava apenas a emoção.
- Senhora, quem sois vós? - insistiu ele.
- Sou uma mulher que tem fé.
Depois, olhando-o e sorrindo-lhe, acentuou:
- Se tiverdes fé, também as vossas feridas hão-se sarar!
A medo, o homem olhou as chagas da lepra e voltou a fitar a mulher que encontrara em seu caminho, nessa manhã. Ela agora parecia ainda mais jovem e formosa.
- Olhai... Ou eu me engano muito... ou as vossas feridas estão a desaparecer... Vede!
E perante o olhar cada vez mais atónito do mendigo, à medida que as mãos de Dona Isabel iam passando suavemente sobre as feridas, estas desapareciam, fechando-se incompreensivelmente.
Sem saber que pensar, sem saber que fazer, o homem voltou a gaguejar:
- Senhora... as vossas mãos... fazem milagres!
- Não são as minhas mãos que fazem milagres... São as amoras que Deus espalhou por estes caminhos!
Segundo a antiga história que o povo conta, tal como muitos outros já tinham ficado seus fiéis vassalos, também o mendigo, curado e maravilhado, se tornou um fervoroso servo daquela que o salvara e que ele veio a descobrir, com pasmo, ser a sua própria Rainha!
A partir de então, o pobre homem desejava somente poder pagar um dia, de qualquer modo, a sua enorme dívida de gratidão.

Andava ele, já altas horas, a terminar um carregamento de lenha, quando viu passar um vulto embuçado, que lhe pareceu de alguém bastante conhecido...
Seguiu-o discretamente, aproveitando os recantos do campo - que para ele não tinha segredos - e acabou por descobrir que se tratava de El-Rei D. Dinis, numa das suas aventuras de amor.
O homem não perdeu mais tempo. Com a maior rapidez que lhe foi possível, correu ao encontro da Rainha, então instalada em Monte Real, a pouca distância dali. E, conseguindo ser levado imediatamente à sua presença, confessou sem delongas nem hesitações:
- Senhora, minha Rainha, perdoai-me... mas sei que El-Rei vosso esposo vos atraiçoa numa aldeia vizinha!
- Que dizeis, meu bom amigo? Estais certo disso?
- Absolutamente certo! Vi-o, com os meus próprios olhos... Ia embuçado... Eu segui-o até à pequena aldeia para onde El-Rei se dirigia... Mas, ficai sabendo, Senhora, que vosso esposo sai muitas vezes assim, às escuras... Mal distingue o caminho, quando volta!
- Pois bem... Escutai... esta noite, ireis vós e alguns homens mais que escolherdes iluminar o caminho, quando El-Rei voltar... Sou eu que vos ordeno, entendeis?
- As vossas ordens serão cumpridas, senhora minha Rainha!
Mas antes que ele se afastasse, Dona Isabel, acrescentou:
- Quando tudo estiver pronto, avisai-me... Eu também quero estar junto de vós.

E, na verdade, quando El-Rei, nessa madrugada escura, voltava da sua habitual aventura de amor, encontrou-se, de súbito, diante dum caminho estranhamente iluminado.
O seu primeiro gesto foi de furor.
- Que fazeis aqui, sandeus? Para que servem estes archotes?
Mas logo se aquietou, varado de surpresa. Vindo do meio dos homens dos archotes, avançou para ele a própria Rainha, que lhe respondeu:
- Estas luzes servem para vos iluminar o caminho, Senhor meu Rei... Vindes cego certamente pelo negrume da noite...
D. Dinis compreendeu. Baixou a cabeça. Quando a ergueu de novo, sorria também.
- Tendes razão, Senhora... Cego vim... E por isso vos agradeço terdes tão bela lembrança... Voltemos a Monte Real!
Cortejo singular, esse, a estender-se pelo caminho. À frente El-Rei D. Dinis e a Rainha Dona Isabel. Ambos calados. Ambos pensativos. Ambos iluminados pelos archotes que os homens erguiam nas suas mãos rudes.
De qualquer modo, fosse como fosse, a notícia propagou-se e no dia seguinte não se falava de outra coisa. De tal modo, que D. Dinis resolveu procurar a Rainha nos seus aposentos:
- Senhora... Fala-se demais no caso de ontem à noite...
- E de quem é a culpa, real Senhor?
- Bem sei que é minha... E por ser assim, venho trazer uma novidade que decerto vos agradará...
- Dizei então...
- Daqui em diante vou chamar àquele caminho... o caminho de Cegovim.
- Muito bem, real Senhor.
- Fostes vós que me destes a inspiração! ... De facto, cego vim... até encontrar os vossos archotes... Vós o dissestes... E eu não esqueci.
- Prouvera a Deus que não o voltasses a esquecer!
- Sim, eu andava cego... Perdoai-me!
- Estais perdoado...
E convidando-o a sentar-se junto dela, numa banqueta de seda, Dona Isabel segredou-lhe:
- Não vos esqueceis, Dinis... Aquele é o caminho de Cegovim... E lá para trás fica a aldeia do Amor!...
Riram ambos. As pazes estavam feitas, mais uma vez. Feliz, tranquilo, jovial, El-Rei acrescentou, rindo ainda:
- Isso mesmo: o caminho de Cegovim... e a aldeia do Amor... Sois a mais inteligente das mulheres... e das esposas!
Não consta que, pelo menos nos tempos mais chegados e naquele mesmo local, D. Dinis voltasse a andar pelos caminhos, de noite, às ocultas da Rainha...
E então, ali a uns dez quilómetros de Leiria, ainda existe a pequena aldeia de Amor. E lá está a ligá-la a Monte Real o caminho de Cegovim (actualmente penso que mais conhecida por Segovim ou Segodim)

NOTA: Mas, segundo reza a História, acho que D. Dinis rapidamente esqueceu a promessa. Os galanteadores são muito mentirosos.......

8 de dezembro de 2008

X- Roda da Fortuna

Esta carta pertence ao Tarot de Visconti-Sforza. Não se sabe quem o desenhou mas foi publicado por US Games em 1978.
A Roda da fortuna mais tradicional e também a de interpretação mais recente, tem a sua origem numa lenda medieval. Nessa época da história a Igreja católica considerava que o orgulho era um dos maiores pecados porque entendiam que o orgulhosos se colocaria sempre acima de Cristo portanto, uma lição para o orgulhoso seria perder todo o seu poder.
Uma das muitas versões da Lenda do Rei Artur conta que ele vê, em sonhos, na véspera da sua batalha final, um rei rico e poderoso, sentado no cimo de uma roda mas, de repente, a deusa Fortuna gira a roda e o rei poderoso que estava no topo, fica esmagado por baixo da roda.
No entanto, esta Roda da Fortuna tem uma origem muito mais antiga em que a Fortuna representava a Grande deusa e o rei a perder o trono era um facto pois, todos os anos, no meio do Inverno, as sacerdotisas simbolicamente sacrificavam o rei e substituíam-no por outro, dando a entender que a Primavera voltaria a chegar e que a Roda representaria toda a espécie de ciclos de vida.
De um modo muito resumido podemos olhar para a Roda da Fortuna, pelo menos, de duas maneiras: numa delas podemos ver os altos e baixos que sempre encontramos no percurso da nossa vida e que nos amadurecem com o aumentar do nosso conhecimento mas, também podemos ver aqui as sucessivas reencarnações em busca do caminho da iluminação.
Sendo assim, numa tiragem podemos ver na Roda da Fortuna o aviso que nos vamos aproximar de uma época de grandes mudanças que se as aceitarmos e compreendermos só nos vão ajudar no nosso desenvolvimento e crescimento.
Exercício de Meditação:- Vá até um lugar sossegado onde tenha a certeza que não irá ser perturbado. Coloque à sua frente a carta da Roda da Fortuna, fixe por uns momentos a sua atenção na carta. Olhe atentamente para todos os pormenores: para cada uma das figuras que estão presentes na Roda, para o centro dessa mesma Roda. Inicie uma série de respirações até se sentir completamente relaxado.
A seguir tente pensar nos seus conflitos ou problemas que o envolvem ou afectam actualmente.
Feche os olhos, solte a sua mente e tente ver os seus problemas como se estivesse a assistir a um filme onde é apenas o espectador. Visualize os personagens envolvidos. Para cada uma escolha uma figura do Tarot que represente cada pessoa ou situação na sua vida.
Visualize um cenário. Onde está? O que sente? Qual é a história? E como acaba?
Visualize agora a Roda. Em que sentido gira? Que sentimentos lhe traz a imagem que está por cima?
Aproxime-se e olhe atentamente para a figura do centro. Não faça perguntas, limite-se a olhar. Começa agora a sentir uma calma profunda... olhe atentamente para o movimento do aro da roda... começa a sentir-se cheio de energia e completamente revitalizado com a vida.
Procure descobrir no movimento da roda um fio de sentido para a sua vida. A roda gira, gira assim como a vida. Sente-se cheio de energia para resolver qualquer obstáculo, problema ou situação da sua vida.
Respire fundo, aos poucos desvaneça a imagem da roda e tudo o que criou. Abra os olhos, se sentir necessidade, pegue num papel e escreva tudo, o que sentiu, o que acha que deve fazer, enfim, escreva o que lhe apetecer mesmo que no momento ache que não tem muito sentido.
Nos dias seguintes leia o que escreveu. Esta carta costuma enviar-nos respostas claras desta maneira, encontrando as respostas que não se viam no momento.
Afirmações (conselhos) para a Roda da Fortuna:
- Adapto-me a todas as mudanças que ocorrem de forma serena. Deixo as forças do destino agirem sem medo do futuro.
- Eu sou a capacidade de mudar.
- Eu sou o criador do meu próprio destino.
- Eu sou a eterna energia em movimento.

30 de novembro de 2008

Lenda de Almaceda

Lendas de Portugal, segundo Gentil Marques.
aqui surge uma lenda estranha e impressionante. Estranha, pela sua própria concepção que é muito diferente de outras histórias do género, impressionante por evocar o mundo do sobrenatural, sempre tão próximo e tão afastado do nosso pensamento.
Escutei esta história quando era pequenito e irrequieto, numa noite de tormenta. A certa altura, nem sei porquê, disse que tinha visto uma caveira a espreitar pela janela, iluminada por um relâmpago. Foi o suficiente para que a velha criada, a Maria do Rosário, começasse a tremer e a benzer-se e fosse, numa corrida fechar a janela. Depois, tremendo sempre e benzendo-se, contou-me a história que eu vou tentar reproduzir. A história da sua terra...

Há muitos, muitos anos, onde hoje fica situada a freguesia de Almaceda, existiam apenas, enormes extensões despovoadas. E por ali costumava correr no seu cavalo favorito, um fidalgo de nome Rodrigo - jovem, rico mas bastante aventureiro. Este fidalgo já não tinha os seus pais e vivia com sua irmã, D. Madalena, numa casa senhorial, rodeados de criados. Tudo, porém, o aborrecia excepto aqueles passeios pela manhãzinha ou ao entardecer, nos dias em que as chuvas não vinham alagar os campos. E, quando o tédio começava a incomodá-lo fugia para a Corte ou para onde pudesse divertir-se e gastar o seu dinheiro...

Certa manhã de Março, mal acabara o sol de surgir no horizonte, D. Rodrigo e D. Madalena montaram a cavalo e saíram para o seu habitual passeio. Ainda não estavam longe de casa quando, de súbito, o fidalgo estacou a montada, olhando fixamente um ponto. D. Madalena, apercebendo-se de que seu irmão ficara para trás, parou também o cavalo e perguntou curiosa:
- Que estás a ver?
- Ou eu estou ainda a sonhar - responde o irmão - ou junto àquele arbusto está uma caveira!
- Rodrigo! Que ideia a tua! Não brinques com essas coisas!
- Não estou a brincar. Ora repara! Vês... além?
O coração da jovem bateu apressado.
- Sim... Parece que, na verdade...
D. Rodrigo tornou-se brincalhão.
- Vamos! Coragem!... Desce do teu cavalo e vem comigo cumprimentar a caveira!
- Rodrigo! Por favor! Tem mais respeito pelos mortos!
- Respeito? - disse D. Rodrigo rindo - Queres ainda mais respeito do que estou a demonstrar? Chegamos ao apuro de interromper o nosso passeio, para lhe dirigir um cumprimento!...
- Rodrigo! Não gosto dessas brincadeiras, já te disse!
- Grande medrosa! Nem pareces minha irmã! Porque tremas assim? É apenas uma caveira que ali está!
Olhando de soslaio, Madalena inquiriu a medo:
- Mas donde teria vindo?
D. Rodrigo soltou uma gargalhada.
- Minha tonta! Queres saber donde veio aquela caveira?... Do cemitério, com certeza! Aquilo por lá deve andar muito aborrecido e ela resolveu dar um passeio, como nós!
- Rodrigo! Não brinques mais!
- De que tens medo? Aquilo são ossos do corpo humano, nada mais.
- Bem sei. Mas devemos ter respeito por eles... Vamo-nos embora! Não me sinto bem aqui...
- Pois vamos! Antes, porém, de abandonarmos o local, manda a etiqueta que desejemos a esta caveira um bom dia...
- Rodrigo! Por favor!
O Tom suplicante da irmã irritou-o. E resolveu contrariá-la, continuando em tom de mofa:
- E já agora... se, na verdade, a caveira saiu do cemitério por estar aborrecida... devo lembrar-lhe que, às vezes, também estou aborrecido... E, como resido aqui perto, tenho muito prazer em convidá-la para jantar, hoje, comigo!
Madalena tapou o rosto com as mãos, numa crise de choro.
- Que heresia, Rodrigo! Que heresia!
E esporeando o cavalo, a jovem amazona voltou para casa, deixando atrás de si as gargalhadas impertinentes do irmão, que ria do seu pânico...

Contudo ainda a donzela galopava à vista, quando aos ouvidos de D. Rodrigo soou uma voz cava e pausada, vinda não se sabia de onde:
- Cavaleiro! Não quero de forma alguma desapontar-te... Se isso te diverte, podes estar certo que, esta noite, não esquecerei o teu convite...
O jovem fidalgo olhou em volta. Ninguém, além dele próprio e da figura vaga da irmã que continuava galopando, a perder-se na distância...
O riso morreu-lhe na garganta. Seria uma alucinação dos seus sentidos? Sentiu-se inquieto. Estava já arrependido da sua brincadeira macabra. Bem lhe tinham recomendado mais respeito pelos mortos...

Conforme reza a história, D. Rodrigo ficou-se ainda uns momentos a olhar a caveira no solo. Sem voz. Sem gestos, De súbito, montou o seu cavalo e galopou em direcção ao mosteiro mais próximo, onde contou o sucedido. Os frades julgaram que ele não estaria no seu juízo perfeito e, apenas lhe deram uma pequena cruz para colocar no peito, pois isso o livraria dos ataques do Demónio.. mais reconfortado, D. Rodrigo voltou ao solar onde a irmã o esperava, transida de pavor.
- Tardaste tanto! São quase horas de jantar e eu morro de medo!
desta vez ele não brincou.
- Sossega! Tudo correrá bem. Trago comigo esta cruz dada por um dos frades do mosteiro...
- Ouve, Madalena! Se alguém estranho vier jantar hoje connosco, teremos de o receber como bons anfitriões. Já mandei colocar mais um talher na mesa. E avisei o nosso criado José de que a visita esperada hoje, vai causar-lhe grande pasmo.
A jovem olhou o irmão, num misto de assombro e medo
- Tu... tu pensas que, na verdade... alguém estranho virá aqui?
Ele acenou com a cabeça, afirmativamente, deixando a irmã mais trémula.
- Vai para o teu quarto. hoje dispenso-te ao jantar.
Madalena agarrou-se a ele e disse-lhe:
- Nem que morra de medo, hei-de ficar contigo! Não te deixarei sozinho!
Umas pancadas fortes na porta da entrada, interromperam a conversa.
- Aí está a nossa visita! É pontual!
- Benze-te Rodrigo! Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos...
Um grito do criado José interrompeu a oração de Madalena e logo uma voz cava, soturna, se fez ouvir.
- Diz a teu amo que sou o seu convidado desta noite.
tentando uma segurança que não sentia, o dono da casa ordenou:
- Entre, por favor! Tem o seu talher junto ao meu. Como vê... esperava-o!
E diz z mesma história remota que um vulto sem rosto entrou pelo salão. D. Madalena caiu numa cadeira. D. Rodrigo chamou a si todas as suas forças para se mostrar sereno.
- Queira sentar-se...
Mas a voz cava e soturna voltou a fazer eco no salão:
- Não vim aqui para cear contigo neste palácio. Vim apenas buscar-te!
D. Rodrigo empalideceu.
- Não compreendo...
- Quero que me acompanhes à minha morada.
- E... onde mora?
- Muito perto da Igreja. Vem comigo. Sou eu, agora, quem te convida. Preciso falar-te!
Reunindo todas as forças, D. Matilde pediu:
- Não vás, Rodrigo! Pode ser uma alma perdida!
A voz cava soou, de novo, mas desta vez num tom zombeteiro:
- Acaso terás medo, jovem fidalgo? Tu, o valente aventureiro de tantas noites de orgia?
- Meu irmão! Manda-o embora! Manda-o com Deus!
Mas D. Rodrigo sentiu que não podia fugir. Que não devia fugir. Que não queria fugir. Colocou a sua capa sobre os ombros e saiu, deixando a pobre Madalena chorando e cheia de medo...

Quando a porta do palácio se fechou sobre os dois vultos, o frio cortante da noite veio bater no rosto de D. Rodrigo. Não havia luar. Os gritos das aves nocturnas ouviam-de de vez em quando, soando como alerta. O jovem fidalgo tinha um peso enorme no peito, mas tentava não mostrar medo.
Começaram a andar. O vulto sem rosto à frente. D. Rodrigo um pouco atrás. Nem uma única palavra trocaram pelo caminho. Durante a caminhada, o jovem recordava o seu passado. Passado breve mas cheio de nódoas. E diz-se que o jovem D. Rodrigo, nessa hora, prometeu a Deus modificar-se, se não lhe acontecesse mal algum...

Chegados ao portal da Igreja onde apenas se adivinhavam as cruzes do cemitério, D. Rodrigo, involuntariamente, estacou. Então o vulto sem rosto voltou a falar:
- Entra na Igreja comigo! Conseguimos ser pontuais.
Efectivamente, no relógio da torre batiam pesadas e soturnas doze badaladas.
O jovem fidalgo voltou a hesitar. Mas já o vulto sem rosto gritava na noite escura:
- Entra! Não há tempo a perder! Esperam-me lá em baixo e já sabem que vem comigo um companheiro.
Os pensamentos chocaram-se no cérebro de D. Rodrigo. A fim de ganhar tempo, D. Rodrigo perguntou:
- Para onde me leva?
Então soou uma gargalhada. gargalhada horrível, lancinante que se ficou a repercutir no espaço. Depois, o vulto falou de novo, enquanto empurrava suavemente, o jovem fidalgo, obrigando-o a entrar na Igreja deserta:
- Vais conhecer o meu palácio. Vês esta lousa aberta? É a minha morada... Vamos, desce!
O moço fidalgo compreendeu que tinha que reagir. Estava à beira do abismo. Revoltou-se enérgico, juntando os restos de coragem:
- Para que hei-de descer?
- Tens medo?
- Não! Quem foi sepultado na igreja não pode ser uma alma penada!
Segunda gargalhada estridente fez fugir os pássaros nocturno que lá se tinham refugiado.
- Nessa parte é que reside o teu engano! O teu e o dos que me sepultaram. Julgaram-me bom em vida... Mas só Deus conhecia os meus grandes erros. Por isso Ele me condenou!
- Condenado?
- Sim! Agora já que troçaste de mim, quero que desças para saberes como é a minha ceia!
- Não vou! Deus proíbe-me que me enterre vivo.
- Se não fosse a cruz que trazes ao peito, eu te obrigaria a descer! E lá em baixo, sofrerias comigo o fogo da redenção!
Para si próprio, o fidalgo murmurou uma prece em que punha toda a sua alma.
- Que Deus me acuda!
Instantaneamente, o vulto sem rosto pareceu acalmar-se. A sua voz soou com mais brandura:
- Fui na terra um aventureiro como tu, sem respeito pelas coisas sagradas. Um homem fútil e leviano. Só fazia caridade por ostentação. Que a minha pena te sirva de alerta! cada vez que encontres algum corpo sem vida, lembra-te da alma que o abandonou, pois ela poderá precisar das tuas orações. Em vez de escarneceres... reza! Quando se te depare um osso humano, enterra-o com carinho em terreno sagrado, orando pelo eterno descanso daquele a quem pertenceu! Que a tua alma ceda à caridade e à compaixão pelos mortos! Que a tua alma ceda à caridade que estou a transmitir-te, pois começo a ver luz no meu caminho! Alguém está orando por mim. Alguém, neste momento faz promessas para me libertar!... É tua irmã! Por isso te dou um bom conselho: Vai-te e não esqueças quanto te disse, se quiseres também salvar-te! Que a tua alma ceda ao teu orgulho que foi teu apanágio, para que nela ocupe lugar o amor ao próximo!

A voz cava e soturna deixou de se ouvir. O vulto sem rosto desapareceu pela lousa aberta. Na Igreja o silêncio era pesado. Então, D. Rodrigo começou a correr para casa. A correr e a rezar. E a repetir, no meio das suas orações, numa estranha obsessão:
- Que a tua alma ceda! Que a tua alma ceda!
Chegando à porta do solar, D. Madalena, ali o esperava, sempre a rezar, caiu-lhe nos braços, chorando de comoção.
- Graças a Deus! Graças a Deus voltaste!
Como ele amiúde repetia a mesma (Que a tua alma ceda!) o povo das redondezas começou a tratá-lo por Almaceda.
Tempos depois, já refeito do choque, reorganizou a sua vida. Distribuiu parte das suas terras pelos que vinham ao solar pedir abrigo e, forem essas pessoas vindas das mais variadas terras que resolveram começar a chamar àquelas terras "Terras do Almaceda", mais tarde apenas Almaceda, em homenagem àquele fidalgo que tanto os ajudava.

28 de novembro de 2008

IX - Eremita


Esta carta pertence ao baralho de Tarot Casanova também conhecido por Erotic Tarot de Luca Raimondo, publicado por Lo Scarabeo em 2000.
Nesta carta está representado, principalmente, o recolhimento do mundo externo para se poder activar a mente inconsciente mas, o Eremita também é um mestre que nos poderá ensinar como encontrar o nosso próprio caminho daí o ver-se um homem velho, de barbas brancas, levando na mão esquerda um bastão onde se apoia e a direita levanta uma lanterna até à altura do rosto.
Esta imagem alimentou muito a imaginação da Idade Média pois, via-se o Eremita vivendo na floresta ou no deserto, longe de todos os interesses que se consideravam "normais" para o resto das pessoas. Estas, muitas vezes e, principalmente na Europa, consideravam-no santo, com poderes mágicos. Fosse homem ou mulher, o Eremita dava abrigo e abençoava os viajantes.
Assim, o Eremita é o velho sábio, sozinho, que é confortado e aquecido pelo seu espesso manto da contemplação. A lanterna faz com que vejamos o Eremita como guia e mestre pois oferece-nos a luz para que melhor consigamos encontrar o nosso caminho. O bastão do Eremita será portanto, o bastão de um feiticeiro.
Esta carta será a representação das fases introvertidas da nossa vida, em que sentimos necessidade de nos defender de influências estranhas para alcançar a nossa paz interior, longe das pessoas e de qualquer tipo de actividade. Aqui, sentimos necessidade de procurar a solidão.
Geralmente, através desta carta, somos conduzidos a formas mais maduras de amor.
Exercício de Meditação - Esta meditação será muito útil para pacificar a mente e encontrar-se interiormente.
Comece por escolher o local onde irá fazer esta meditação. Prefira um local calmo, não muito iluminado. Coloque a carta do Eremita, sobre uma mesa no ponto cardeal norte, acenda uma vela e sente-se confortavelmente à sua frente. Feche os olhos, inspire e expire até se sentir relaxado/a e calmo/a.
Sinta que à sua frente se encontra o arquétipo do Eremita. Observe-o bem, veja como ele está em perfeita harmonia com o ambiente que o cerca e detém em si a força interior para superar qualquer obstáculo.
Inspire e expire, sinta-se completamente relaxado/a. Está agora numa estrada comprida, é noite e apenas a luz brilhante da lua ilumina o seu caminho. Ao longe avista o Eremita, um velho frade que caminha na sua direcção com passos lentos, porém firmes. Ele dirige-se para si, traz consigo a lâmpada que ilumina o caminho escuro e o bastão onde se apoia.
Encontra-se agora com o Eremita. Ele vem oferecer-lhe a sua luz interior, luz capaz de dissipar trevas. Traz igualmente a sua mente e coração abertos e repletos de luz e paz. Observe-o. Veja como os seus olhos são bondosos, dirija-se a ele e diga-lhe: "Mestre, ilumina o meu ser, ajuda-me a encontrar a minha luz".
O Eremita coloca a sua candeia à altura do seu coração. Abra-o e preste atenção ao velho sábio, ele quer conhecê-lo/a melhor, fale com ele, ele aceitará tudo o que tiver para lhe dizer, até o seu silêncio, pois veio até si para ajudar e não para o/a repreender.
Agora é o momento de encontrar respostas: ouça o silêncio, sem pressa, leve o tempo que achar necessário, escute apenas com o coração.
O Eremita ajuda-o a escolher a chama que se ajusta à sua luz interior, guarde-a no seu coração.
Agradeça e despeça-se dele.
Observe o Eremita a afastar-se e, aos poucos, desvaneça a imagem do Eremita.
Concentre a sua atenção na respiração e saia progressivamente do relaxamento.
Afirmações (conselhos) para a carta do Eremita
- Aprendo com as experiências de cada dia. Cresço, mantenho o equilíbrio e deixo o meu espírito livre para ser verdadeiramente feliz.
- Eu sou a prudência.
- Eu sou a paz do meu silêncio interior.
- Eu sou a sabedoria.
- Eu sou a paciência.

26 de novembro de 2008

Holocausto






Recebi um e-mail, neste momento, que dizia, mais ou menos, isto....

Exactamente como foi previsto há cerca de 60 anos...
Faz parte da História Mundial e, mais especificamente, da II Guerra Mundial, o momento em que o Supremo Comandante das Forças Aliadas (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, etc.) General Dwight D. Eisenhower, descobriu os campos de concentração e as suas vítimas. Nesse momento, num gesto de lucidez ordenou que se fizessem o maior número possível de fotos e mandou chamar os alemães das terras próximas para que fossem guiados àqueles campos de concentração e que, inclusivamente dessem sepultura aos mortos que ainda por ali se encontravam. 
E, por ter dado estas ordens acompanhou-as da seguinte explicação: "Que se tenha o máximo de documentação. Façam filmes, gravem testemunhos porque, em algum momento ao longo da história, algum idiota se vai erguer e dirá que isto nunca aconteceu"
"Tudo o que é necessário para o triunfo do mal, é que os homens de bem nada façam" (Edmund Burke).
Ora bem, o Reino Unido removeu o Holocausto dos currículos escolares porque "ofendia" a população muçulmana, que afirma que o Holocausto nunca aconteceu...
A II Guerra Mundial terminou por volta do ano de 1945 onde morreram 6 milhões de judeus, 20 milhões de russos, 10 milhões de cristãos e 1900 padres católicos que foram assassinados, massacrados, violentados, queimados, mortos à fome, humilhados e tudo o mais que se possa imaginar. Os alemães e os russos tinham outras prioridades em mente...
Agora, mais do que nunca, com o Irão, entre outros, sustentando que o "Holocausto é um mito" é muito importante fazer com que o mundo nunca esqueça. O e-mail que recebi deveria ser lido por 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Vamos, cada um de nós, tentar ser um elo desta cadeia e participar reenviado ou até, se possível traduzindo para outras línguas...
Não o apague, muito menos da sua memória.

22 de novembro de 2008

Lenda da água que beba dela

Lendas de Portugal de Gentil Marques.
Beatriz bordava, sozinha na pequena sala.
Lá fora, a atmosfera pesada punha ameaças de tempestade no cérebro e no coração das gentes. Uma inquietude estranha fazia agitar com mais rapidez do que seria necessário o braço da jovem Beatriz conduzindo a agulha com mestria. Mas o ritmo do bordado seguia com o seu pensamento. Quanto tempo teria de estar privada de ver e ouvir o seu bem amado? Amava em silêncio, porque tudo ali, naquela casa, tinha de ser feito em silêncio. O pai achava-a muito nova para pensar em casar. A madrinha, que a criara desde pequena após a morte de sua mãe, educara-a sim, mas não lhe dera amor! Quanto ao seu pai, embora sempre lhe testemunhasse grande carinho, tinha os seus múltiplos problemas e achava que uma donzela já podia considerar-se feliz se tivesse um palácio, bom nome, fortuna e um pai que a amasse...
Tanto, na verdade, ela possuía. Contudo... não se sentia feliz!
Quando, certa tarde, vira Pedro de Trava pela primeira vez, os olhos de ambos gritaram logo uma jura de amor.
Sim, Pedro amava-a também! Apenas esperava o momento que ela encontrasse propício para a pedir ao pai. Para estas coisas, nem todas as ocasiões servem. Beatriz bem o sabia. Por isso, aquela espera em silêncio. Um silêncio que a atormentava.
A porta da salinha de estar abriu-se quase sem ruído. Mas Beatriz pressentiu alguém entrar e olhou. Era D. Ximena, a madrinha. Tinha algo de fulgurante no olhar e Beatriz amedrontou-se. Numa voz que procurava ser afável, D. Ximena perguntou:
- Beatriz... Que tens? Porquê tanto afã no teu bordado?
Beatriz tentou sorrir.
- Trabalho para não me aborrecer.
D. Ximena sorriu também. Um sorriso estranho, que fez paralisar o braço de Beatriz. Tentava ler no íntimo daquela que a tinha criado mas que não aprendera a amar. A dama olhou-a também, com olhar penetrante. E a sua voz soou falsa aos ouvidos da donzela:
- Beatriz, sei que a minha presença não te basta... e o teu pai tem vários assuntos que lhe roubam o tempo. Daí esse tédio a espicaçar-te os nervos. A tua idade é perigosa... Estás, precisamente, na idade de amar...
D. Ximena calou-se. Mas o seu olhar continuava fixo no rosto de Beatriz, que se sentiu corar. Para disfarçar a sua confusão tentou dizer qualquer coisa.
- Senhora, as donzelas como eu quase não sabem se devem ou não amar... se é que isso é coisa dominável.
A dama então sorriu abertamente.
- Nada mais dominável que o amor!
Beatriz olhou-a de novo, intrigada. A madrinha continuava a sorrir. Parecia satisfeita. Pousou-lhe uma das mãos no ombro.
- A tua hora chegou, Beatriz!
O coração da jovem bateu forte. Mas tentou mais uma vez disfarçar o tumulto da sua alma.
- Meu pai não será talvez da mesma opinião...
D. Ximena passou-lhe os dedos pelos cabelos, gesto que Beatriz não se lembrava de jamais lhe ter notado.
- Conheço a opinião de teu pai. Por isso estou falando contigo desse assunto, para te dizer que podes contar com a minha ajuda...
Beatriz olhou a madrinha bem de frente, receosa de que fosse ilusão ou pura brincadeira. Notou-lhe uma estranha expressão de triunfo, mas confundiu-a com a de sincera alegria. Levantou-se e tomou-lhe a mão, num gesto quase infantil.
- Ai, minha madrinha, como estou contente! Pedro é bom... valente... nobre...
Num gesto seco, D. Ximena sacudiu a mão de Beatriz. A sua voz era agora áspera. O sorriso desaparecera-lhe.
- Pedro? ...
Aturdida, Beatriz murmurou, já a medo:
- Sim ...
D. Ximena baixou a voz, sibilando quase:
- Referes-te... ao conde Pedro de Trava?
Cada vez mais assustada, Beatriz concordou:
- Sim ... refiro-me a Pedro de Trava ... Não era a Pedro que desejáveis ajudar?
A resposta veio breve e seca:
- Não!
- Então ... não compreendo o vosso desejo de ajuda ... Como quereis ajudar-me?
- Vou explicar-te: é meu intento casar-te com o meu sobrinho, o nobre Raimundo de Toscana. E casar-te quanto antes!
Beatriz olhou-a com horror.
- Não, a senhora não fará isso! ... Nem sequer conheço o vosso sobrinho ...
D. Ximena encolheu os ombros:
- Terás tempo de sobra para o conhecer.
Beatriz mordeu os lábios, para evitar a fraqueza de chorar. Queria mostrar-se forte.
- Meu pai não quer casar-me por enquanto!
D. Ximena encolheu de novo os ombros.
- Não me aflige a vontade de teu pai. Vive agarrado às suas terras e ao seu dinheiro. Mas é tempo de ir pensando no teu dote... que deve ser avultado ...
Beatriz olhou com desprezo a dama que lhe falava. Sentiu-se de súbito fortalecida.
- É então o meu dote que está em causa? ...
O rosto de D. Ximena tornou-se lívido.
- Como ousas falar-me assim? Ouve o que tenho a dizer-te. Não sei quando nem como conheceste Pedro de Trava. Também não me interessam as juras que tenham trocado. Deliberei casar-te com Raimundo e casarás com ele, mesmo que o teu coração neste momento não lhe pertença! Falaremos com teu pai, amanhã de manhã. Quando o sol voltar a nascer, terá mais uma incumbência: anunciar o teu primeiro dia de noivado!
E sem mais acrescentar nem sequer ouvir, D. Ximena saiu da salinha - onde Beatriz ficou, por momentos, como petrificada. Encostou-se depois a um móvel, tentando acalmar o seu espírito em confusão. Mas já a sua dama de companhia corria ao seu encontro:
- Estais bem, D. Beatriz?
A jovem recuperou um pouco mais a lucidez.
- Aproxima-te, Juliana. Preciso de ti! Viste a minha madrinha?
- Sim ... vi-a quando saía ... Ia tão apressada, tão pálida, tão nervosa, que me assustei!
- Ouve, Juliana: ela quer casar-me com o sobrinho, D. Raimundo!
A rapariga abriu os olhos num espanto.
- Aquele que só faz o que ela manda?
- Sim, esse.
- Ó céus! E que havemos de fazer?
- Vai imediatamente ao castelo dos Travas e pede para falares com o jovem conde. Vê lá, não te enganes! Só falarás com Pedro! E conta-lhe tudo.
- Sim, D. Beatriz, assim farei. Mas terei de sair daqui sem ser vista.
- Arranja-te como puderes. E diz mais: é necessário que Pedro venha amanhã de manhã pedir-me a meu pai!

A noite começou a cair lentamente. Beatriz não viu mais a sua dama de companhia. Em dado momento, D. Ximena perguntou por ela. Beatriz sobressaltou-se. E mentiu:
- Foi arranjar-me linhas para o meu bordado. Deve andar por aí.
A dama franziu as sobrancelhas e ficou um momento estática. Depois saiu da sala. Quando voltou vinha colérica.
- Encontrei Juliana, mas justificou sua ausência com o arranjo de um vestido teu... e estava totalmente esquecida das linhas. Para castigo de tanta impostura, vais já para o teu quarto... e hoje não voltarás a ver Juliana.
Beatriz obedeceu sorrindo. Juliana já voltara e o facto de poder agora estar sozinha com os seus pensamentos era para a jovem mais apetecível do que a companhia da velha dama. Ao entrar no quarto, Juliana apareceu-lhe de repente.
- D. Beatriz! Dei o recado e o senhor conde diz para ficardes descansada. Ele virá de manhã falar com o vosso pai.
E, dando meia volta, a rapariga desapareceu nos corredores, veloz como uma gazela.

Beatriz dormiu toda a noite. Como eram longas as noites de espera! Jamais o sol lhe viria a parecer tão preguiçoso. Mas, quando ele chegou cheio de força e de beleza, a inquietude de Beatriz não serenou. Todo o seu pensamento estava preso na decisão do pai. Se ao menos o tivesse visto... lhe tivesse falado! Mas D. Ximena afastara-a dele. Propositadamente, bem o sabia. Oh! que espécie de mulher era a que fora escolhida para a educar e criar!
O tempo parecia arrastar-se como serpente no chão. Nem D. Ximena nem Juliana apareciam. Teria acontecido alguma coisa à rapariga? Talvez D. Ximena a tivesse castigado, quando se vira em face do outro pretendente à sua mão. E qual seria a decisão do pai? Qual seria?
Foi até à porta para tentar saber o que se estava passando. Porém, a porta estava fechada. A revolta assediou-a. Presa! - pensou. D. Ximena mantinha-a em clausura. Porquê? Porque Pedro de Trava viera, decerto! Daí o seu ódio, o seu desejo de agir mais livremente.
Bateu com os punhos na madeira. Bateu loucamente, como quem deseja fugir ao perigo. Ouviu passos apressados. Depois, a porta abriu-se e o pai entrou, sozinho. Estava visivelmente contrariado.
- Que alarido é este?
Beatriz amarfanhou no peito toda a sua ansiedade.
- Senhor! Queria sair... e a porta não se abria!
- Que ideia! Abri-a sem esforço. Onde está Juliana?
- Ainda hoje a não vi.
- E a tua madrinha?
- Estive sempre só, meu pai.
- Que dia estranho!
Fez uma pequena pausa. Passou a mão pelas barbas esguias e olhou a filha de frente.
- Beatriz! Acabo de receber dois pedidos de casamento para a minha única filha. Dois pedidos... e quase à mesma hora!
O coração de Beatriz batia aflitivamente. Perguntou a medo:
- E... que respondeste, meu pai?
O fidalgo voltou a cofiar as barbas já grisalhas. Sorriu, intimamente satisfeito.
- Respondi um sim à minha maneira.
Foi a vez de Beatriz ficar intrigada.
- Um sim... aos dois?
O pai continuava a sorrir...
- Pois é verdade: um sim aos dois!
Alarmada, julgando não ter ouvindo bem, Beatriz exclamou:
- Mas é impossível!
Uma risada ecoou no aposento.
- Claro que é impossível! Mas nenhum dos teus pretendentes poderá dizer que o excluí! Serão eles os primeiros a desistirem...
Beatriz arriscou:
- Senhor... mas esse processo...
- Que processo?
- De... dizer sim a dois...
O fidalgo riu de novo. Os seus olhos piscos fitaram a filha com malícia.
- Usei um velho ardil.
- Um ardil?
- Ora, estes pedidos de casamento surpreenderam-me bastante. Confesso que não esperava fazer-te sair já da minha tutela. Todavia... se houvesse entre os pretendentes alguém que pudesse portar-se à altura de te merecer...
O fidalgo fez uma ligeira pausa. Beatriz parecia nem respirar. Ele continuou:
- Enfim, livrei-me deles dizendo que cederia a mão da minha filha Beatriz àquele que primeiro desse cumprimento a um destes meus dois desejos: um dos pretendentes, à escolha, teria de colocar sozinho, a cúpula na igreja desta terra; o outro, de trazer a água da levada de S. Romão até à vista deste solar.
Beatriz sentou-se numa cadeira.
- Mas o primeiro é inteiramente impossível!
O fidalgo riu.
- O que elimina já um dos concorrentes! Quanto à levada, não marquei tempo... e até lá...
- Qual deles escolheu a levada?
O fidalgo sorriu com desprezo.
- A tua madrinha exigiu essa cláusula para Raimundo de Toscana. Mas está furiosa comigo. Acha-a abominável!
Riu de novo, alto, não reparando sequer na palidez de Beatriz.
Ela interrogou ainda:
- E... o outro?
- O outro? Oh! É decerto um visionário. Em vez de desistir, agradeceu-me a grande honra que lhe concedia e... aceitou!
Beatriz sentiu o coração bater-lhe ainda mais forte. Mas já o pai lhe passava o braço pelos ombros e a fazia descer até ao salão, dizendo:
- Vamos passear um pouco. Precisamos de ar puro!

Alguns dias passaram. Dias de ansiedade e solidão para Beatriz. Juliana - segundo lhe haviam dito - fora a casa dos pais tratar de um deles que adoecera. E D. Ximena parecia demasiado ocupada com outros assuntos e não encontrava tempo livre para fazer companhia à afilhada. Quanto a Pedro, só na véspera lhe enviara um estranho recado pelo tratador dos cavalos. E o recado repetia-o ela, vezes sem conta: "Só Deus nos poderá ajudar amanhã". Confiava no seu bem-amado. Mas que poderia ele fazer? Esse "amanhã" acabava de chegar e nada de novo vinha até ela.
De súbito, D. Ximena entrou, cortando-lhe os pensamentos. Vinha mais altiva e agreste do que nunca. Foi logo direita ao assunto:
- Beatriz! D. Raimundo começou já a dar provas do seu grande amor por ti! Um fidalgo como ele, cavando, sozinho, a terra dura, para ter direito à tua mão, é na verdade enternecedor!
Beatriz replicou:
- Pelo menos, dá provas de uma cega obediência!
A dama olhou-a empertigada:
- Obediência?...  A quem?
Altiva, a jovem respondeu:
- A vós... minha madrinha!
D. Ximena falou com mais rispidez:
- Pensas então que ele age por obediência? Enganas-te. Ele ama-te, Beatriz! Enquanto o outro nada faz para te merecer!
Beatriz sentiu-se ferida. Revoltou-se.
- O outro, como a madrinha diz, irá em breve à nossa igreja colocar a cúpula, na presença de fidalgos amigos da nossa casa.
A dama alarmou-se:
- Como o sabes? Quem te disse essa patranha?
- O ,eu coração que não falha!
- Louca! Colocar a cúpula! Bem sabes que isso é humanamente impossível. teu pai exigiu duas provas para que só um fosse beneficiado. E o primeiro a escolher a única realizável foi o meu sobrinho e teu noivo!
- A levada ainda vem longe - respondeu Beatriz.
- Mas ele trabalhará sem descanso! E chegará aqui! Enquanto o outro, nem hoje nem nunca colocará a cúpula na igreja!
- A Deus nada é impossível! Ele e eu acreditamos que o Senhor nos ajudará... para confundir os ambiciosos!
- Decerto estás louca e ofendes-me! Esquece esse homem... porque já é tarde para pensares nele!
- Deixai-me só! Preciso orar!

No corredor surgiram então passos apressados. As duas mulheres calaram-se, olhando ansiosamente a porta de entrada. E o velho fidalgo surgiu, com uma expressão de espanto no olhar. Dirigiu-se à filha:
- Beatriz! O conde Pedro de Trava acaba de colocar a cúpula na igreja, perante numerosa assistência! O caso não tem precedentes! Dei-lhe a tua mão!
A jovem caiu nos braços do pai e D. Ximena, praguejando entre dentes, saiu espavorida.
Sós, pai e filha ficaram assim largo tempo abraçados. Depois, meigamente, ele falou:
- Como poderia supor que amavas tanto esse homem e que ele te amava tanto? Dei-lhe para realizar um cometimento que julguei impossível. Mas ele, depois de orar largo tempo, colocou sozinho a cúpula, sem demonstrar grande esforço.
- E onde está Pedro?
- Na igreja. Voltou a prostrar-se de joelhos. Mais logo será recebido aqui, com as honras que ele e tu merecem. Só espero que sejas muito feliz!
- Serei sim, meu pai. Tenho a certeza.

Entretanto, D. Ximena corria como louca direita à levada que já vinha próxima. Ao chegar junto ao sobrinho, gritou-lhe com fúria:
- Que fazeis, imbecil!
Ele suspendeu o seu árduo trabalho e tentou explicar.
- Falta já pouco! Dentro de algumas horas estarei à porta do solar! Vede como corre a água!
- Pois beba dela, seu pateta! Beba dela porque o outro já colocou a cúpula!
Raimundo sentou-se com desânimo no próprio chão molhado. Alguns populares riam à socapa e repetiam a frase de D. Ximena.
- Que beba dela!... Que beba dela!...
E assim,andando de boca em boca, nasceu o nome de BOBADELA à pitoresca povoação pertencente ao concelho de Oliveira do Hospital.

NOTA:- Não encontrei em lado nenhum explicação de modo como Pedro de Trava colocou SOZINHO a cúpula no topo da igreja.
Quando li esta lenda lembrei-me de uma Gata Borralheira à portuguesa...

18 de novembro de 2008

VIII - Justiça

Esta imagem pertence ao tarot Art Nouveau de Matt Myers, publicado por US Games em 1989.
Uma figura andrógina segura na sua mão direita uma espada desembainhada e na esquerda, uma balança com os pratos em equilíbrio. A imagem deste trunfo foi inspirada na deusa titã grega Témis, que aparece, com a sua venda nos olhos e a sua balança, nos afrescos dos palácios da justiça em todo o mundo ocidental. Os olhos estão vendados para nos mostrar que a lei não discrimina (ou não deveria discriminar).
O Oitavo Arcano Maior representa o conhecimento claro e objectivo, o julgamento consciente e decidido, a incorruptibilidade, o equilíbrio e a sinceridade - e mostra que atingimos o nosso próprio senso das leis. Esta carta significa, principalmente um alto grau de responsabilidade, mostra que nada nos é dado de presente e, também não nos é negado pois nós somos os únicos responsáveis por aquilo que conseguimos e experimentamos. Aqui é enfatizado o princípio da sinceridade e do equilíbrio.
Exercício de Meditação:- Virado/a para leste, coloque sobre uma mesa o arcano número oito A Justiça. Coloque-a à sua frente em sentido vertical e olhe atentamente para ela durante uns minutos.
Pegue num papel e numa caneta e escreva o que deseja obter (ganho de uma causa que pensa ser justa para si; o resultado do seu trabalho ou o que precisa harmonizar dentro de si ou nas suas emoções).
Sente-se confortavelmente em frente ao arcano, feche os olhos, faça algumas respirações que o/a auxiliem a descontrair, observe o ar a entrar e a sair, relaxe.
Visualize o arquétipo da justiça. Diante de si está uma bela e jovem mulher, ela transmite-lhe um ar muito simpático, gentil e equilibrado. A justiça está no seu trono e numa das suas mãos tem a sua espada que usa para separar a fantasia da realidade, a confusão e a falsidade das verdades: na outra segura uma balança para pesar o perfeito e o imperfeito de cada energia.
Olhe atentamente para ela e aproxime-se. Inspire e expire profundamente. A energia da Justiça começa a fluir para si, deixe-se envolver por ela e diga-lhe:
"Senhora da perfeita justiça, rainha do equilíbrio e da harmonia..." (tudo o que escreveu anteriormente no papel diga agora, pessoalmente, à Justiça, fale com verdade e com o coração).
A Justiça coloca a mão sobre o seu coração e examina-o, deixe fluir as suas emoções...
A Justiça está agora a transmitir-lhe energias positivas como coragem, generosidade, sucesso, integridade, harmonia e equilíbrio interior, abra o seu coração a essas energias e deixe-as fluir.
A partir de agora irá sentir-se com mais equilíbrio na maneira como age, com as suas emoções em plena harmonia, encontrará a paz interior e a sua mente estará mais tranquila, pois sente-se agora renovado/a com a energia da Justiça.
Agradeça e despeça-se. Aos poucos, desvaneça a imagem da jovem mulher Justiça. Volte a inspirar e expirar o ar, concentre-se nas suas respirações e, aos poucos, volte a tomar consciência do lugar onde se encontra. Abra os olhos, espreguice-se.
Dê a meditação por concluída. Pegue no papel e na carta A Justiça, guarde-os juntos durante uns dias. Quando sentir que é tempo suficiente, vá buscar novamente o papel, releia o que escreveu e coloque-o num sítio onde o possa reler todos os dias. Faça isso até ter atingido os seus objectivos. Quando tiver conseguido os seus objectivos, queime o papel e sopre as cinzas ao vento.
Afirmações (conselhos) para a carta A Justiça:
- Tenho equilíbrio e harmonia em todos os aspectos da minha vida. A minha vida flui de forma positiva e em total acordo com o Universo.
- Eu sou o equilíbrio.
- Eu sou a imparcialidade.
- Eu sou a disciplina.
- Eu sou a prontidão.

7 de novembro de 2008

Lenda da Batalha da Cobra

Lendas de Portugal de Gentil Marques.
Naquele tempo - há muito tempo... - o filho de um rei egípcio saiu do seu país e veio aportar a terras da antiga Lusitânia.
Encontrou vasto campo disponível e instalou-se aí depois de breve luta. Sem dificuldade, rodeando-se de alguns dos seus homens de armas, formou o seu reino. Ora Hércules Líbio - assim se chamava o príncipe - tinha uma filha lindíssima, à qual pusera o nome de Neiva e era o encanto de quantos tinha a oportunidade de a conhecer. Porém Hércules Líbio escondia-a ciosamente, pois todos os jovens lhe pareciam indignos da sua formosa filha.
Certa manhã, um guerreiro chegou junto do palácio. Vinha em jornada de outras terras. O sol abrasava e o jovem sentia sede. Viu os muros que circundavam a faustosa residência. Fez parar o cavalo, que batia na terra quente com impaciência desusada. O portão estava entreaberto. O guerreiro apeou-se e entrou num pátio de boas sombras, levando o cavalo pela rédea. Como não visse ninguém, ergueu a voz, pedindo água:
- Há aí alguém que dê de beber a quem tem sede?
Logo uma rapariguinha morena acorreu e apresentou-lhe uma infusão que o jovem aceitou com júbilo. Esqueceu-se dos seus modos fidalgos, do seu ar arrogante, e bebeu como qualquer homem sedento.
A rapariga sorriu. Apesar do pó que lhe cobria o rosto, os cabelos e o vestuário, percebia-se que se tratava de um fidalgo, forte e belo. Daí aquele sorriso. E por esse sorriso ele teve coragem de mais pedir.
- Como hei-de dessedentar também o meu cavalo?
A rapariga mordeu os lábios, pensativa.
- Esperai, senhor cavaleiro! Meu amo não gosta de ver jovens como vós para cá destes muros... Mas... vou tentar arranjar-me de forma que ele não saiba...
- E porque é ele assim tão severo?
- Porque... Bem... A minha jovem ama é muito nova... E muito bela...
O cavaleiro sorriu.
- Compreendo. Tem medo que lhe roubem a mulher...
A rapariga riu com vontade.
- Oh... não é mulher dele... É filha!
- Filha?
- Sim, meu senhor.
- E tem desse modo fechada uma jovem, para mais formosa, impedindo-a de conhecer o mundo?
- É verdade. Tem posto fora quantos chegam a estas paragens e por acaso avistam a minha ama!
A curiosidade do jovem cavaleiro aguçou-se.
- Como se chama a tua ama?
- Neiva, e é filha de Hércules Líbio, senhor destas terras.
O rapaz sorriu e murmurou como para si mesmo:
- Neiva... Bonito nome!
Depois, mais alto:
- E tu, como te chamas?
- marta... Uma criada para vos servir.
De longe, uma voz bonita soou então:
- Marta! Marta!
A rapariga assustou-se:
- Aí vem a menina... Vá-se embora, senhor!
O jovem desceu do cavalo.
- Enganas-te Marte! O meu pobre "Vingador" não irá muito longe se lhe não der de beber.
A voz de Neiva chamava agora mais próxima:
- Marta!
Ele incitou-a:
- Responde daqui! Quero vê-la!
Sem saber resistir-lhe, Marta obedeceu.
- Senhora... estou aqui perto... Vinde ver!...
Então Gastão de Mendonça e a jovem Neiva encontraram-se pela primeira vez frente a frente. No olhar de ambos havia surpresa e alegria. havia luz e calor. Lá fora, o sol continuava quente. Quente e luminoso. Um fortíssimo sol de Verão!

Encostada ao muro, olhos perdidos no horizonte, Marta espiava. Perto, a jovem Neiva, coração batendo, tinha todos os seus sentidos presos aos movimentos da sua dedicada aia. De súbito, ela anunciou baixinho:
- Ele aí vem!
Baixinho também, a jovem murmurou:
- Vai tomar conta, não venha alguém surpreender-nos...
E a rapariga, contente por ver contente a sua ama, saltou ligeira um banco de pedra e foi colocar-se mais adiante, atenta como um cão de guarda.
O cavalo ficou do lado de lá do muro. Num movimento lesto, em breve o cavaleiro beijava com ardor os dedos delicados da sua amada.
- Gastão! tardaste um pouco e já estava receosa!
Ele apertou de encontro ao peito a mãozinha que se lhe entregava confiante.
- Meu amor! Isto não pode continuar assim! Vemo-nos às escondidas... Entro aqui como um ladrão... Estamos sempre receosos de que nos descubram...
Neiva suspirou fundo.
- Bem sabes que meu pai encontra defeitos em todos os pretendentes...
Marta fez sinal para que falassem mais baixo. Gastão levou uma das mãos à testa, num gesto de impaciência.
- Não, não pode ser! Somos tratados como se praticássemos algum crime!
- Desobedecemos a meu pai...
- Mas eu quero-te! Quero-te para minha esposa, compreendes?
As lágrimas afluíram aos olhos da jovem.
- Compreendo-te Gastão. Mas também sei que no dia em que falares a meu pai, tudo acabará. Bem sabes como ele anda inquieto com o que se passa entre o povo. Essa serpente horrorosa, que entra nas casas mal fechadas e mata sem piedade, traz a população num alvoroço. A toda a hora lhe pedem providências...
- Também eu preciso de tomar resoluções rápidas. Não irei saltar mais este muro como um criminoso, só porque te amo. Vou falar-lhe hoje mesmo.
Aflita, Neiva agarrou-lhe um braço.
- Não... Não vás! Ele expulsa-te!
Gastão cerrou os dentes. Era um guerreiro e estava habituado a grandes lutas; mas essa, interior, cansava-o muito mais!
- Está dito: hoje mesmo tenho de falar a teu pai! De homem para homem. Sou nobre e tenho fortuna, amo-te e sou um guerreiro!
De novo Marta fez sinal para que não gritasse. Gastão de Mendonça beijou de novo a mãozinha trémula de Neiva e pediu:
- Vai para os teus aposentos. Marta que te acompanhe. Vou falar a teu pai!
Quando o guerreiro lusitanos entrou no salão nobre do palácio de Hércules Líbio, este já o esperava, pois que ele se fizera anunciar. Ao vê-lo tão jovem e de porte altaneiro, Hércules teve um ligeiro movimento de desagrado. Depois de um frio cumprimento, perguntou:
- Que desejais de mim? Não tenho tempo a perder, devo prevenir-vos!
Gastão olhou-o de frente, com segurança:
- Nobre senhor! É sobre a minha espada que vos juro ser de grande interesse para mim o assunto que me traz à vossa presença.
Hércules Líbio teve um sorriso irónico.
- Não me custa acreditar-vos. E de que assunto se trata?
- Da minha felicidade e da vossa filha.
O assombro e o furor estamparam-se no rosto do dono da casa.
- Que dizeis? Porque misturais a minha filha com a vossa felicidade?
Rápida, a resposta surgiu:
- Porque só com ela serei feliz!
Hércules tentou gracejar.
- Tão pouco me custa acreditar nessa afirmação. No que, porém, não posso crer é que dependa de vós a felicidade da minha filha!
- Perguntai-lhe então...
Perante a serenidade do jovem, Hércules Líbio perdeu o domínio de si mesmo. E gritou quase:
- As cabeças jovens como a dela não sabem o que querem. Eu, sim, sei o que desejo para Neiva. Casará, mas com um guerreiro forte e destemido. Um guerreiro da minha estirpe!
Ofendido, Gastão explicou:
- Sou um guerreiro, senhor! E não será necessário juntar qualquer palavra a esta, para lhe dar maior realce ou definir o sentido.
Hércules Líbio franziu as sobrancelhas.
- Conheceis Neiva?
- Desde o Verão passado.
- E... já se falaram?
- Devo confessar-vos que iludimos a vossa vigilância...
A cólera tingiu de vermelho o rosto de Hércules Líbio. Vociferou:
- Sois portanto um traidor!
- Traidor é aquele que falta à sua promessa ou a um sagrado dever. Nada vos prometi, senhor!
- Mas zombastes das minhas ordens!
Gastão tentou acalmar-se:
- Se o tivesse feito, não estaria aqui a pedir-vos com o devido respeito a mão de vossa folha. Sou nobre, rico e guerreiro acreditado entre os meus. Possuo a juventude que a juventude de vossa filha reclama. Amo-a e sou amado por ela. Necessitamos apenas do vosso consentimento para...
Interrompendo-o com fúria, Hércules Líbio levantou-se e indicou-lhe com um gesto a saída, enquanto gritava, já fora de si:
- Basta! Ide já embora... se não quereis que vos mande matar!...
Gastão ergueu a cabeça, num desafio:
- Cuidado, senhor! Não estais falando a uma criança, nem a nenhum dos vossos criados!
A voz de Hércules Líbio saiu quase rouca:
- Retirai-vos!
Gastão inclinou-se, cerrando os dentes para se conter. Respirou fundo e conseguiu afirmar:
- Irei! Mas acreditai que ainda haveis de precisar de mim!
Mal o guerreiro lusitano abandonara a sala, ouviu-se enorme burburinho. A porta do salão abriu-se num repente e Neiva entrou a correr, com o horror estampado no rosto. Caiu aos pés do pai e falou, ofegante:
- Senhor meu pai!... A Coluber (cobra)... está aqui! Já matou Marta, que se sacrificou para me salvar... Os criados fugiram... O povo grita... Senhor meu pai, tendes de pôr termo a este horror!
Hércules voltou-se para os guerreiros que o rodeavam.
- Procurai a serpente, homens da minha guarda! Que fazeis aí parados? A morte entrou no palácio... é preciso destruí-la!
Olhou-os, um por um. Nenhum deles parecia disposto a sair.
- Porque esperais?
Neiva agarrou as mãos do pai:
- São guerreiros... mas temem a Coluber... Bem sabeis que ninguém jamais ousou fazer-lhe frente.
Hércules empalideceu:
- Que homens de armas são estes, afinal? Sois muitos... e a serpente é só uma!
Os homens entreolharam-se, envergonhados. Mas ninguém arredou pé. O próprio Hércules começou a perder o seu ar arrogante:
- Pois quê? Vamos esperá-la aqui para que ela faça a sua escolha?... Morreremos todos, um após outro, sem nada intentar para nos defendermos?...
Neiva voltou a olhar o pai, que de todo perdera a autoridade.
- Todos teme a morte, senhor... Até vós!
Então, entre os que enchiam a sala, rompeu uma voz firme:
- Todos... menos eu!
Houve um movimento de surpresa. Em silêncio todos os rostos se voltaram para quem mostrava tal coragem. E um grito soou:
- Gastão! Estavas aí e nem dei pela tua presença! Sereno, ele volveu:
- Teu pai acaba de expulsar-me em termos impróprios de um cavaleiro. Ouvi quanto disseste e sinto muito a morte da nossa pobre Marta!
Neiva voltou a soluçar. Ele aproximou-se com carinho.
- Não chores mais. Aflige-me ver-te assim!
- Gastão a morte entrou neste palácio...
- Já antes entrara no meu coração. E como levo a morte comigo não receio enfrentar essa coluber que põe os homens parados como crianças medrosas!
Hércules, que tudo ouvira atentamente, observou:
- Não sois daqui por isso não sabeis o poder da coluber. Todavia, já que vos atrevestes a chamar-nos crianças medrosas... desafio-vos a que proveis o vosso desplante! Procurai sem demora a serpente e matai-a!
Gastão fez um gesto cerimonioso com a cabeça. A sua voz era triste mas pausada:
- Aceito o desafio, com uma condição: a mão da vossa filha Neiva!
Hércules olhou de frente o jovem atrevido. Passou revista rápida à expressão dos que tinham invadido a sala e percebeu que todos esperavam, ansiosos, uma decisão afirmativa. Baixou os olhos. Depois tornou a olhar o jovem.
- Seja! A coluber é uma calamidade! Se a conseguirdes vencer - o que duvido - sereis justamente, consagrado como herói. E com um herói poderei casar a minha filha.
- Não te exponhas assim pelo nosso amos! Ela vai matar-te! Vai matar-te...
O jovem guerreiro tomou nas suas as mãos de Neiva. Beijou-as com ternura. Depois, fazendo uma elegante reverência, como se fosse iniciar um torneio, saiu da sala. Sozinho.
Neiva, que de novo soluçava perdidamente, sentiu-se de súbito, agarrada pelos braços fortes do pai. A sua voz chegou-lhe aos ouvidos numa cadência cariciosa que jamais lhe escutara:
- Coragem, minha filha! Ele vai morrer... mas amaste um homem extraordinário!

A tarde caminhava de mansinho, indiferente ao drama que se desenrolava no palácio de Hércules Líbio. Só, tendo apenas a espada na mão e no peito a vontade inquebrantável, Gastão tentava fugir ao encantamento da serpente. Encontrá-la fora-lhe fácil. Vencê-la é que seria difícil. Rangendo os dentes, ele tentava não a fitar, sem deixar de estar atento aos rapidíssimos movimentos do terrível monstro. Frente a frente, a vida e a morte mediam distâncias. A coluber ficara estática. Dir-se-ia ter descoberto pela primeira vez um adversário perigoso. De repente, deu um salto no ar para cair sobre o jovem. Mas ele esquivou o ataque, brandiu a espada - e decepou-lhe a cabeça, de um só golpe!
Agora, porém, em vez de uma, a coluber transformara-se em duas serpentes que procuravam atacá-lo, cada uma de seu lado.
Gastão empalideceu. Mas não se desorientou. Da sua espada surgiram sucessivos como se estivesse em plena batalha, rodeado de inimigos. Atingiu várias vezes a coluber, de tal sorte que, por fim, ela ficou imóvel. Com a espada meteu-a dentro de um caixote sem deixar esquecido nenhum dos bocados a que a reduziu. Depois, levou o caixote para o ar livre e deitou-lhe fogo.
As chamas começaram a subir num colorido estranho. O suor corria pelo corpo do guerreiro, inundando-o. Arfava de cansaço. A distância respeitável, um grupo enorme observava-o. Eram os aldeões, prevenidos do que se estava passando por um dos criados fugidos do palácio.
Um clamor imenso saiu de todas as bocas, vitoriando o jovem herói. Ouvindo o alarido, os homens de Hércules Líbio foram saindo da sala, a pouco e pouco. dando largas ao seu contentamento, o povo saltara os muros e invadira o terreno do seu senhor. Os mais novos dançavam à volta do caixote em cinzas, misturadas com as cinzas da própria coluber. Entre gritos de vitória, o herói foi levado em triunfo até ao limiar do salão nobre. Aí, Hércules e Neiva esperavam-no, mais pálidos do que a própria morte. nem queriam acreditar na maravilhosa verdade: Gastão de Mendonça vencera a pavorosa serpente!
Acenderam luzes, todo o palácio estava em festa. Os cortesãos e o povo aclamavam o herói que, nos braços de Neiva, recebia a merecida recompensa.

Hércules Líbio cumpriu a sua promessa: Gastão casou com a jovem Neiva. E para comemorar tão valoroso feito, Hércules determinou que se chamasse daí para o futuro, ao lugar onde a serpente Coluber fora morta - Coluber Briga, ou seja, a batalha da cobra.
O tempo foi fazendo crescer a povoação, dando-lhe mais habitantes, mais casas, mais importância. E o tempo também, que a tudo assiste, foi tranformando o nome de Coluber Briga, primeiramente em Conimbriga e depois em Coimbra, a formosa e famosa cidade do Mondego.

NOTA:- O que mais gostei, nesta história foi aprender como os guerreiros lusitanos eram tão docinhos e tão bem educados.... ;)