3 de setembro de 2008

Lenda da Princesa Fátima


Neste tempo de férias aproveitei, como é meu hábito, para meter o nariz em alfarrabistas e encontrei uma colectânea que achei maravilhosa sobre lendas de Portugal (da autoria de Gentil Marques) e pensei logo em compartilhá-las convosco.
Aqui vai a primeira que se chama: Lenda da Princesa Fátima.
Vem correndo de geração em geração que a Princesa Fátima, jovem e bela princesa moura, ainda mais bela do que jovem, vivia recolhida no seu palácio, em tempos que se perdem na memória do próprio tempo. E vivia feliz.
Era filha única do Emir - e tal privilégio dava-lhe direito a ser tratada como verdadeiro tesouro. Seu pai, temeroso de que a vissem - e maculassem com o seu desejo - os olhos ambiciosos dos cristãos, mandara construir só para ela, uma pequena torre, ricamente mobilada, onde Fátima passava dias e noites, tendo por única companhia a tagarelice das aias.
De todas elas, a jovem e bela Fátima escolhera para confidente a mais velha e experiente. A mais fiel, também. Cadija era o seu nome.
Certa tarde, quando o calor do meio do ano punha preguiças no corpo e na voz, Fátima buscou ficar sozinha com Cadija.
- Que me quereis, Princesa?
- Fala-me de tudo o que sabes...
- Mas de quê, Senhora?... Da Festa das Luzes?... Do vosso formoso primo, o príncipe Abu?
- Não, não quero que fales a tal respeito... Já me disseste tudo quanto sabias... e até aquilo que te pediram para me dizer...
- Senhora!
- Não tenhas medo, Cadija. Eu sou tua amiga. Confio em ti.
E o sorriso da Princesa tranquilizou a velha aia. Mas depois, a voz de Fátima desceu ao tom das confidências:
- Cadija... Eu sei que meu primo Abu me quer para esposa... Mas eu, Cadija, eu...
Suspenderam-se a voz e o olhar. A velha aia compreendeu. Estava habituada aos mistérios do coração. E sorrindo também, mas discretamente, limitou-se a perguntar:
- Voltastes a ver, Senhora... o tal guerreiro cristão?
Ela fez que sim com a cabeça. Os olhos fecharam-se, num arrepio. Talvez de receio. Talvez de amor. Ou talvez de dúvida...
Silenciaram-se durante instantes. Lá de fora, do ar livre e puro, vinha o chilrear das avezinhas. E vinham também o calor do Sol e o cheiro do campo...
Depois, Fátima, a jovem e bela princesa moura, ainda mais bela do que jovem, respirou fundo.
- Ouve, Cadija... Ele tornou a passar ontem à tarde, além, naquele caminho... Vês?... Parou por momentos, tal como já acontecera... Lembras-te?
- E tendes a certeza de que era o mesmo, Princesa?
- Absoluta! Certeza absoluta, Cadija!
De novo, respirou fundo. E de novo desceu a voz quase a um murmúrio, como e falasse consigo própria:
- O coração não nos engana!
Foi a vez da velha aia se amedrontar. Agarrou as mãos da sua princesa e fechou-as nas suas. Singular contraste da vida! Mãos velhas e enrugadas a tentar defender mãos bonitas e viçosas.
- Minha querida Princesa... se vosso pai vem a descobrir...
- Cala-te, Cadija!
- Esse é o cristão que ele mais odeia, Senhora! - e, num suspiro inquieto e indeciso - O cristão que todos nós mais devemos odiar, Princesa!
Contam a lenda velhinha e a própria história de Portugal, que ele se chamava Gonçalo Hermingues e era conhecido entre os companheiros pelo nome de "Traga Mouros".
Forte e destemido, habituado a fazer de cada impulso uma vontade, o moço guerreiro era tido e havido como um dos melhores do seu tempo.
Porém, embora cruel e sanguinário na luta, não perdoando os que não lhe perdoavam, Gonçalo Hermingues possuía também uma alma de poeta.
Gostava de cavalgar pelos campos, improvisando os seus versões e as suas canções. E foi numa dessas cavalgadas que ele descobriu um vulto de encanto em certa torre daquela terra ainda em poder dos mouros, mas que ficava bem ao alcance dos seus olhos e dos seus desejos de conquista.
Gonçalo Hermingues voltou ao mesmo local, mais do que uma vez. E fosse por acaso, fosse de propósito - ela lá estava sempre, como visão maravilhosa que ia enchendo, aos poucos, o pensamento do guerreiro-poeta.
Em breve, ele sabia tudo o que lhe interessava a respeito dela. Chamava-se Fátima, era jovem e bela, mais bela do que jovem, filha única do emir, que a queria casar com o rico e poderoso primo Abu, e vivia recolhida naquela torre, donde raras vezes saía, na companhia das aias.
Mas Gonçalo Hermingues soube também que uma dessas saídas devia estar para breve. Seria na noite da Festa das Luzes, que correspondia precisamente à noite de S. João, em pleno mês de Junho...
Então, Gonçalo Hermingues começou a forjar o seu plano. Um plano filho da imaginação e do destemor. E com os seus companheiros habituais, tão arrojados como ele, esperou ansiosamente, pela noite de S. João.
Em silêncio saíram para o campo e em silêncio se dispersaram, tomando posições combinadas. Apenas a Lua, grande e redonda como balão festivo, era testemunha da cilada que se preparava. Uma cilada igual a tantas outras que naquele tempo se faziam - mas com uma diferença fundamental: era uma cilada de amor.
Tal como mandava a tradição entre a moirama, alta madrugada formou-se o cortejo que todos os anos ia em procissão de luzes até às margens do rio, como prelúdio da festa que se prolongaria pelo dia fora; às vezes pela noite dentro...
Fátima, a jovem e bela princesa moura, lá seguia também, acompanhada fielmente pela boa Cadija.
À luz dos archotes, de albornozes ao vento, montando ligeiros corcéis escolhidos entre os melhores e primorosamente ajaezados - os cavaleiros e as damas da moirama constituíam um magnífico e raro espectáculo.
Assim saíram pelas portas largas do alcácer e assim se lançaram em luzida cavalgada, a trote largo, acordando ecos no solo adormecido. Ecos que se misturavam com as suas próprias risadas...
Fátima era conduzida por seu pai: mas sentia ao lado o olhar atento de seu primo Abu.
Porém, nesse romper de madrugada ela não pensava nos problemas de coração. Dava-se inteira ao prazer da liberdade que tão raramente usufruía. Queria aspirar todo o ar puro, olhar duma só vez tudo quanto seus olhos podia alcançar, cantar todas as cantigas que sabia...
De súbito, como se a própria noite inundasse a manhã, transformando abruptamente a claridade em trevas - surgiu o mais terrível e odiado de todos os gritos:
- "Por Santiago, aos Mouros!"
E logo, da sombra das árvores quietas, do escuro da folhagem, saíram, correndo e gritando, em doido tropel de cavalos,vultos e mais vultos de guerreiros cristãos caíram sobre o aparatoso cortejo, destroçando-o.
Num instante, as canções de prazer mudaram em uivos de combate; a alegria em pânico; a ordem em confusão.
Fátima enchia de pavor os lindos olhos negros. Abandonada por seu pai, que correra a tomar o comando da defesa, não vendo mais a fiel Cadija, que desaparecera como por encanto, mal podendo raciocinar sobre o que acontecia - a Princesa sentia-se tremer.
Foi nesse mesmo momento que os olhos de Gonçalo Hermingues a descobriram. De um salto estava junto dela. Levantou-a e colocou-a no seu cavalo. E sorriu de triunfo. Ali estava o prémio da vitória.
Gonçalo Hermingues ergueu o braço e deu ordem de retirada aos companheiros, dando o grito de vitória já alcançada:
- Por Santiago e Rei Afonso!
Já na retirada, levando consigo a jovem e bela Fátima, além de outros prisioneiros, foram surpreendidos pelo ataque dos sarracenos. À frente de todos vinha Abu que tentou logo arrebatar a princesa a Gonçalo e conseguiu. Este não hesitou, caiu sobre o outro, com toda a violência.
A luta foi curta mas fatal para Abu. Quando Gonçalo Hermingues ergueu no ar a figurinha desmaiada de Fátima, os companheiros entenderam e terminaram a luta.
Diz-se que D. Afonso Henriques felicitou Gonçalo e perguntou-lhe o que queria como lembrança desta vitória.
- Licença para casar com a princesa Fátima!
E diz-se que el-rei de Portugal sorriu e disse:
- Pois seja assim, com a condição que ela se converta à santa Fé de Cristo e consinta ser vossa esposa.
Enquanto se tratavam dos esponsais a princesa foi viver para uma zona que diz a lenda, se passou a chamar Terra de Fátima e, mais tarde, só Fátima, nome que ainda hoje mantém.
Quando casada e baptizada a princesa moura recebeu o nome de Oureana. Como prenda de núpcias, D. Afonso Henriques ofereceu-lhes a vila de Abdegas que em homenagem à princesa passou a chamar-se vila de Oureana e por corruptela popular acabou por se transformar na Vila de Ourém.
Para terminar os versos que Gonçalo Hermingues dedicou a Oureana:
Ora vos tinha, ora não,
Mas a outros vos tomava.
Éreis minha, já não éreis,
Que em lutas todos andavam,
Em mil sortes pelejando.
Ai de mim, te vejo eu...
Aguentem-se companheiros,
Eu por mim tenho o que é meu.
Oriana, ai tem por certo
Que a vida que hei-de viver
Tudo esqueceu por teu bem
E mais ninguém há-de ver!

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