10 de setembro de 2008

Lenda dos Aroches


"Do Livro "Lendas de Portugal" de Gentil Marques"
No ano 39 da nossa era governava, em Roma, Caio Germano Calígula. O seu carácter doentio e sanguinário só lhe grangeara inimigos. E os que o serviam, ou eram iguais a ele, ou faziam-no apenas por medo. Certo dia, conta a nossa lenda, que não fica longe da história - o jovem romano Licínio Balbo foi obrigado a comer à mesa do imperador com o cavalo deste - o célebre "Incitatus" - ao qual eram prestadas honras de primeiro cônsul! Revoltado com tal desaforo, Licínio abandonou Roma e entrou, clandestinamente, na Andaluzia.
Há muito tempo que não chovia. Os campos de Aroche mostravam a desolação motivada pela sede das suas árvores e arbustos. Fazia calor, um verdadeiro calor andaluz. Mas no palácio de Flávio Valério havia defesa contra a alta temperatura. E Flávio, aquele que governava Aroche em nome de Roma e de Calígula, era bem digno do seu senhor! Por isso o povo oprimido o odiava. Odiava-o e temia-o. Mas o governador tinha o poder nas mãos, carta branca para qualquer represália ou castigo. E sabia-se temido, embora não ignorasse que não era respeitado. Porém, para um devasso como Flávio Valério, a opinião do povo não interessava. E se algum dos seus súbditos mais categorizados ousava proceder de forma diferente e criar um pouco de simpatia entre os governados, Flávio Valério mostrava logo o seu pesado desagrado.
A cadeira de grande espaldar onde Flávio se recostara gemeu sob o peso do seu corpo, não muito pesado, é certo, mas demasiado entregue à lassidão. O governador de Aroche pensava. Pensava naqueles que mandara chamar e deviam estar a aparecer. E gozava já, antecipadamente, da alegria de ver amachucado e ferido no mais íntimo do seu orgulho aquele que viera de Roma comandar meia centena de homens e tomava agora atitudes de amigo ou pai do próprio povo.
Os pensamentos de Flávio Valério foram cortados pela aparição de um soldado dizendo que estavam à porta as pessoas que mandara chamar. Levantando a cabeça num ar importante e sorrindo com maldade, Flávio Valério mandou levantar o reposteiro e tentou ser amável:
- Entra Júlio Decêncio e traz a tua filha! Precisamos conversar!
O homem que acabara de dar entrada no salão, era de meia idade e tinha no rosto uma expressão dura, embora franca. A seu lado, linda na sua simplicidade, sua filha Márcia nem se atrevia a olhar em volta. O homem de meia idade cumprimentou o dono da casa:
- Salve, Flávio Valério! Que me queres?
O governador sorriu, olhando a formosa donzela e respondeu com um grosseiro comentário:
- Que tesouro possuis, Júlio Decêncio! A tua filha decerto agradaria ao nobre Calígula!
Júlio Decêncio tornou mais dura a sua expressão.
- Se foi para me ofenderes que me mandaste chamar, retirar-me-ei imediatamente!
Flávio olhou-o com cinismo. Falava pausadamente, como quem mede cada uma das suas palavras.
- Não sejas tão soberbo! Se tens a sorte de possuir como filha uma mulher lindíssima, tens todavia a desgraça dessa mesma mulher tomar atitudes suspeitas a Flávio Valério e a Roma!
O militar franziu as sobrancelhas.
- Suspeitas? Que queres dizer, Flávio Valério? Explica-te!
Tornando-se subitamente sério e agreste, embora sem subir de tom, o governador de Aroche declarou:
- Diz-se que a tua filha Márcia é afecta à causa de Tiago, o filho de Zebedeu! E já a ouviram falar de Cristo!
O velho militar olhou a filha numa interrogação de aflitiva surpresa. E indagou:
- Márcia! Acabam de fazer-te uma grave acusação. É verdade o que Flávio Valério afirma?
Márcia olhou o pai com tristeza. O seu ar humilde desaparecera, sem contudo se mostrar arrogante. Respondeu, serena:
- Meu pai... Os grandes de Roma não gostam de ser desmentidos!
Júlio Decêncio irritou-se.
- Mas Flávio não está em Roma, está em Espanha!
Suavemente, Márcia acrescentou:
- Onde governa o nome de Calígula!
Atarantado, o velho militar olhava ora a filha, ora o governador de Aroche. Este sorria mais abertamente. Continuava a gozar com o desespero do seu compatriota e sentenciou:
- Ouviste a tua filha? Aqui não és tu quem governa Aroche, pois tens na mão meia centena de plebeus. Quem governa sou eu que represento Roma! Compreendeste?
Ia continuar a sua reprimenda quando descobriu junto ao reposteiro da entrada do salão, um jovem de aspecto altivo e desembaraçado. Tornou a sorrir e comentou:
- Vejo ali à porta alguém que muito interessa ao nobre Calígula e, por consequência, a mim próprio! Entra, cidadão Licínio! E os guardas que te apanharam e trouxeram que fechem bem as portas!
Licínio entrou com desembaraço, sorria também e, quando falou, havia bastante ironia na sua voz.
- Estás contente por me teres descoberto? É na verdade, uma grande proeza que irá agradar ao teu amo!
Pela primeira vez, Flávio Valério mostrou-se verdadeiramente irritado.
- Amo, dizes? Não! Ele é nosso imperador!
Sempre ironizando, Licínio retorquiu:
- E o seu cavalo, mais do que tu!
- Vê como falas do nobre Calígula!
Olhando de frente, bem nos olhos, o governador de Aroche, o jovem declarou:
- Desprezo Calígula com todas as forças da minha juventude!
- É pena que estejas destinado a morrer tão cedo!
Desconhecendo ainda os outros dois personagens que assistiam a esta cena, Licínio replicou:
- Não és tu quem pode decidir da minha vida e da minha morte.
- Quem pode então? O tal Deus que anda por aí na boca dos rebeldes?
- Não o conheço ainda, mas não me repugna acreditar que será mil vezes superior a Calígula!
Foi a vez do governador parecer recordar-se do militar e de Márcia. Voltando-se para o homem, declarou com certo escárnio na voz:
- Júlio Decêncio! Talvez tua filha Márcia possa ajudar o cidadão Licínio. Ele diz que não o conhece ainda. Compreendes? Ainda!
Licínio olhou a Jovem e não escondeu o seu interesse. Márcia não deixou que fosse o pai a responder. Serenamente e com dignidade humilde, declarou apenas:
- Pudesse eu ser prestável ao meu semelhante!
Flávio troçou;
- Semelhante? Que palavra estranha! Creio que é usada frequentemente por Tiago.
- Na verdade, o caso não constitui segredo visto que o nobre Valério também a conhece.
Com admiração sincera Licínio exclamou:
- Eis uma mulher como deviam ser todas em Roma!
- Bela, não é verdade, Licínio? Por isso a vou recomendar a Calígula!
- Não o farás! Márcia é minha filha, não o esqueças! Por ela exporei a vida!
- Veremos o que decide o nosso Imperador!
Júlio Decêncio voltou a falar
- Terás de haver-te comigo e com os meus homens, Flávio Valério!
- Isso é uma ameaça? Que ideia a tua! Pois vou dar-te um conselho. Cuidado Júlio Decêncio! Tenho visto outros serem mortos por muito menos.
O militar empalidecera, mas a sua expressão e voz continuaram duras.
- Pois faz o que entenderes! Vem Márcia! Esta casa é pequena demais para nós!
- Vai-te! Vai-te beldade! Em breve voltarás! ...
Quando ambos saíram, Licínio olhou o governador cara a cara.
- Agora já podes dizer o que pretendes de mim. Também me queres mandar a Calígula?
- Sempre o mesmo este jovem Licínio. Sabes? Formei outro projecto que me sabe bem melhor...
- Não me soou bem a tua voz
- Que pena! Julguei que irias agradecer-me o deixar-te livre!
- Compreendo-te. Queres apanhar-me com mais segurança. Conheço os processos de Roma!Mas vou ser, uma vez ao menos, obediente: Vou sair e já!

Passaram-se alguns dias, calmos e claros sem que a sombra de Flávio os viesse enegrecer. Refeita do susto que tivera Márcia recomeçou a sua vida normal.
A manhã começara a romper. Embuçada, num manto negro, Márcia saiu de casa, rodeou a esquina da rua com passos apressados. De súbito, estacou. Sentia-se seguida. Tapou melhor o rosto e voltou-se. Um homem também embuçado, dirigiu-se para ela e deu-se a conhecer.
- Salve Márcia, a mulher mais destemida que encontrei!
-Salve nobre Licínio Balbo!
- Sabeis já quem sou? Conheceis o meu nome?
- Depressa tentamos saber o que nos apoquenta o espírito...
- E eu tive a sorte de entrar nos teus pensamentos?
- Desde que te vi em casa de Flávio, pareceste-me um homem honrado
- Grande a minha alegria pelo conceito que de mim fazes. Deves calcular que também tu me interessaste, visto que te segui e a esta hora. Há cinco dias que te espreito. E receio por ti pois sei quanto vale Flávio. Mandou seguir-te...
E por ti não receias? Eu sei que ele me mandou seguir por isso saio a esta hora imprópria.
- Só depois de te conhecer soube o que era o receio. Desejo defender-te. Concedes-me essa graça?
- Márcia, tenho visto que estás exposta a grande perigo. Bem sabes o que aconteceu ao Nazareno e a muitos que o seguem.
- Sou tão feliz agora! É tão doce a doutrina de Jesus! Se a conhecesses...
- Ajuda-me a conhecê-la.

Desde este dia que Licínio passou a ser visita de Márcia e Júlio Decêncio. Mas no meio desta felicidade, não tardou que surgisse uma nuvem negra. Alguém viera avisar Licínio que se preparava o rapto de Márcia para as primeiras horas do dia seguinte. Quando Júlio Decêncio foi informado, o sangue do velho militar ferveu:
- Vou matar Flávio ao seu palácio!
- Não vá, meu pai! Não quero sangue derramado por minha causa.
Licínio, já mais calmo, propôs:
- Márcia sairá esta mesma tarde de Aroche com metade dos teus homens e sob o teu comando, cidadão Júlio Decêncio. Entretanto eu ficarei com a outra metade a proteger a retirada. Entrarão na Lusitânia e lá procurarão abrigo e reforços.
- Talvez não seja desacertado o teu plano. Conheço uma terra onde tenho alguns amigos. Iremos para lá.
- Meu pai, uma filha deve acatar as ordens daquele que lhe deu o ser. Não serei desobediente. Mas, se me é permitido direi que sem Licínio a minha estada será um constante suplício.
- Márcia - responde Licínio - Compreendo-te e amo-te ainda mais se possível for, por isso mesmo quero salvar-te
- Pois bem, então partamos com destino igual mas em pequenos grupos. Formaremos uma nova Aroche, sob o signo de Deus, onde seremos todos felizes.
Foi assim, segundo conta a lenda, que se fundou na Lusitânia a nova Aroche, a qual com o decorrer do tempo o povo passou a chamar ARRONCHES.

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