22 de setembro de 2008

Lenda da galanteria de D. Rodrigo

Lendas de Portugal, segundo Gentil Marques
Esta lenda é de origem algarvia. Nasceu nos arredores de Loulé, quase junto à vila, num terreno outrora despovoado que hoje se chama "Cabeço do Mestre.
Nesse tempo, reinava em Portugal D. Afonso III e a conquista do Algarve era o sonho máximo. D. Paio Peres Correia, mestre de Sant'Tiago, reunindo a fina flor dos cavaleiros lusos, levava por diante o sonho do seu rei. E entre os cavaleiros às suas ordens - diz a lenda - encontrava-se um tal D. Rodrigo de Mascarenhas, conhecido pela sua galanteria para com as damas e especial benevolência para com os enamorados.
Castelo após castelo iam caindo, numa entrega total. O exército português tinha chegado às portas de Loulé. Tomara posições num cabeço fronteiro. O combate travara-se logo no primeiro dia, num local próximo do castelo.
Dois dias durou o combate. Dois dias apenas. Os mouros capitularam e os cavaleiros cristãos entraram na fortaleza, fazendo prisioneiros. Como não convinha que os prisioneiros ali ficassem, D. Paio ordenou a D. Rodrigo que conduzisse os cativos a um lugar mais seguro.
Escoltados por uma pequena hoste, foram os prisioneiros levados de Loulé, através de terrenos já conquistados. Pelo caminho, D. Rodrigo notou entre os cativos um jovem de semblante simpático, mas terrivelmente triste. Vinha ricamente vestido. D. Rodrigo esperou o momento de fazer alto e, acercando-se dele, perguntou-lhe:
- Porque estás tão triste? Na vida guerreira ou se vence ou se é vencido. Quanto à tua honra, fica descansado, porque está salva. Vencemos mas foi necessário quebrar uma resistência valorosa.
O jovem mouro suspirou fundo, mas não respondeu, D. Rodrigo tornou:
- Não julgues que só conto vitórias na minha carreira! És novo e talvez a vida venha ainda a sorrir-te.
O mouro abanou a cabeça e a sua voz soou dolente:
- Senhor, não lamento o meu cativeiro, mas sim a morte das minhas ilusões. O meu nome é Abindarráez e sou da raça dos Abencerragens. Durante a minha infância fui criado em Cártama, vivendo em casa do alcaide da cidade. Esse alcaide tem uma filha Jarifa, com quem brinquei em pequeno. Os anos passaram e Jarifa tornou-se uma doce e formosíssima donzela. O nosso carinho de meninos transformou-se numa forte paixão. E quando supúnhamos chegada a hora da nossa união poder realizar-se, fui mandado para aqui por ordem do meu rei e a pedido do pai de Jarifa que não deseja ver-me casado com a filha. Ora, precisamente há dois dias, chegou aqui um mensageiro de Jarifa, dizendo-me da sua parte que ela me esperava em Silves, para nos casarmos em segredo. Deves calcular como rejubilei. Era, finalmente, a realização do meu grande sonho. A nossa separação ia terminar. Vesti o meu traje mais rico, escolhi o meu melhor cavalo e dispunha-me a sair para Silves quando chegou a notícia que as vossas tropas estavam às portas de Loulé. Seguiu-se a luta e a nossa derrota. E agora aqui vou, sabe Alá para onde, enquanto Jarifa se encontra em perigo em Silves e sem poder voltar para casa do pai! Bem vês, senhor, como me sinto morrer! Se ao menos a pudesse salvar!
Emocionado, D. Rodrigo guardou silêncio após a narração do jovem mouro. Por fim, disse-lhe:
- Abindarráez, tudo na vida pode ser reparado, quando Deus quer! Para quê, pois, esse desespero?
O mouro olhou intrigado o cavaleiro português. Mediu-lhe a expressão benevolente. Reparou melhor no seu porte altivo mas acolhedor. Murmurou:
- Como queres que eu espere algo de bom, se a minha situação é, na verdade, desesperada?
O cavaleiro sorriu:
- Assim pensas?... Eu não!- Não? E porquê, podes dizer-me?
- Sim, vou dizer-to. És de sangue nobre e, apesar das nossas divergências de religião, sei o que um homem nobre deve à sua honra. Pois bem: vou dar-te liberdade para que vás a Silves ao encontro da tua noiva, enquanto é tempo. Depois, regressareis ambos ao nosso acampamento, a entregar-vos como cativos. Queres?
Os olhos do jovem mouro brilharam de alegria:
- Pois... és capaz de acreditar em mim?
- Inteiramente.
- Por Alá te juro que voltaremos, a menos que encontra a morte pelo caminho.
D. Rodrigo, como resposta, deu ordem de continuarem a marcha e de entregarem ao jovem mouro o seu cavalo.
Abindarráez montou no cavalo, que relinchou de alegria ao reconhecer o dono. E, com uma saudação reconhecida a D. Rodrigo, galopou a caminho de Silves.

No pátio privativo de Aben-Afan, no castelo de Silves. Jarifa esperava, com ansiedade, o seu bem amado. Já haviam chegado ali os rumores da batalha perdida e do perigo eminente em que estava toda a moirama de Al-Garb.
Abindarráez e Jarifa caíram nos braços um do outro. Ela murmurou:
- Começava a desesperar!
Ele beijou-lhe os cabelos.
- Querida, se soubesses quanto sofri! Mas agora estamos juntos e vamos casar, mas não será aqui.
- Onde, então?
- Fiquei prisioneiro. Não penses que fugi à luta, pois jamais o faria. Porém, encontrei como chefe dos que nos levam, nem sei para onde, um homem extraordinário que se compadeceu de mim e de ti, ao ponto de me deixar vir buscar-te! Silves em breve será o lugar mais aceso desta guerra e eu temia pela tua sorte!
Jarifa ficou pensativa. Abindarráez voltou a acariciá-la. E perguntou, levantando-lhe o queixo para lhe ver bem os olhos.:
- Querida! Não queres ser a esposa de um cativo? Pois liberto-te da nossa jura!
Ela escondeu o rosto no peito do bem amado, censurando-o:
- Como pudeste supor semelhante coisa! Estava apenas a pensar se seria possível voltares pra Cártama.
Ele apressou-se a informá-la:
- Jamais cometeria essa vileza! O homem que permitiu que viesse buscar-te é responsável por mim. pagaria com a vida a sua cortesia. Nunca lhe corresponderia de tal modo!
Jarifa acariciou-lhe uma das mãos.
- Tens razão, perdoa-me! Partiremos já, antes que Aben-Afan te queira ver.
E montando o mesmo cavalo, Jarifa e o noivo voltaram para o local previamente combinado entre Abindarráez e D. Rodrigo.

Chegados ao acampamento cristão, os jovens mouros foram recebidos por D. Rodrigo. Houve um momento de admiração entre os cavaleiros portugueses. A beleza extraordinária de Jarifa, o encanto dos seus gestos e da sua voz deixavam todos boquiabertos. O porte do jovem tornava-o simpático aos seus carcereiros. Servindo-se da influência dos alcaides depostos, D. Rodrigo pediu a estes a clemência para o pai de Jarifa e o seu consentimento no enlace dos dois enamorados. E o perdão foi concedido aos prisioneiros.
Passeavam eles juntos, quando D. Rodrigo veio anunciar a boa nova-
- Chegaram cartas do meu rei e do vosso. O meu, concede-vos o perdão. O vosso, falou com o pai de Jarifa, que perdoa também a sua fuga e espera-vos para celebrar uma boda digna de vós!
Jarifa tomou a mão de D. Rodrigo num arrebatamento.
- Senhor, senhor, como poderei agradecer-te?
Galantemente, D. Rodrigo retorquiu:
- Sorrindo, senhora! Tendes o mais belo sorriso do mundo!
Abindarráez, com os olhos brilhantes de lágrimas que não queria deixar correr, colocou a sua mão sobre a de D. Rodrigo, dizendo:
- Se precisares da minha vida, podes contar com ela!
Emocionado também, D. Rodrigo disfarçou essa emoção, respondendo com voz segura:
- Ide buscar o que vos pertence enquanto alguns dos meus homens preparam cavalos e escolta. Não desejo que vos aconteça nenhum mal. Adeus, sede felizes ... e, até um dia!
E, sem dar tempo a mais agradecimentos, D. Rodrigo retirou-se do pátio.
Semanas depois do jovem par ter partido, chegaram uns emissários de Abindarráez com grande quantia em dinheiro e dois formosos cavalos brancos.
Rodrigo olhou os emissários, sorrindo. Depois, falou-lhes assim:
- Levai essas prendas e dizei a Abindarráez que não se amofine por eu não poder aceitá-las. Acrescentai que nada me devem, pois não estou habituado a roubar damas, senão a servi-las e honrá-las!
- Recusais então o resgate?
- Não há resgate. Nunca o pedi. Levai antes as minhas homenagens à mulher mais bela que até hoje vi, e ao jovem de porte altivo e sangue nobre, que entraram fundo no meu coração.
E os emissários partiram perplexos.

19 de setembro de 2008

II - Sacerdotisa

Esta carta pertence ao baralho do Tarot Classic e é uma reprodução a cores do Tarot do século XVIII de Claude Burdel. Esta reprodução foi feita por Stuart Kaplan e publicada por US Games em 1974.
Durante a Idade Média, contava-se uma história em que, uma vez, uma mulher tinha sido eleita Papa. Durante vários anos, ela sempre disfarçada de homem foi subindo na hierarquia da Igreja até chegar à posição máxima e só foi desmascarada quando morreu, de parto, durante uma comemoração da Páscoa.
Esta papisa Joana foi, provavelmente, uma lenda mas, a papisa Visconti, nos finais do século XIII, foi bem real.
Existia um grupo italiano chamado guglielmitas que acreditava que, sua fundadora, Guglielma da Boémia que morreu em 1281, iria ressuscitar em 1300 para dar início a uma nova era em que as mulheres seriam papas e, por se considerarem adiantados na sua sabedoria, elegeram Manfreda Visconti com primeira papisa. A igreja, como era de calcular, achou isso uma heresia e mandou para a fogueira a irmã Manfreda em 1300.
Cem anos mais tarde, a mesma família Visconti encomendou o primeiro baralho de Tarot onde aparece uma carta com uma figura feminina, sem número e sem nome e que seria posteriormente, chamada de Papisa.
Mais tarde, Court de Gebelin acreditava que o tarot tinha a sua origem no Egipto e a Papisa passa a ser chamada de Grande Sacerdotisa. Actualmente, ambos os nomes são usados.
A lenda da Papisa Joana e a história de Manfreda Visconti ilustram uma evolução importante na Idade Média que é o regresso da mulher e dos princípios femininos à religião.
A religião propagada por padres e rabinos passou a ser considerada muito masculinizada, com ênfase no pecado, julgamento e castigo, sentia-se a necessidade de misericórdia e de amor e estas qualidades eram identificadas com a mulher.
Embora a igreja visse Cristo como o Filho e aquele que espalhava o amor e a compaixão, o povo, mesmo assim, ainda sentia necessidade da presença de uma mulher. Surge então, a Virgem Maria quase ao nível do próprio Cristo.
O judaísmo, muito mais conservador apoiou-se na longa tradição da Cabala e pegaram na palavra do Talmude, Shekinah, que significa glória de Deus manifestada no mundo físico e tornaram-na o lado feminino de Deus. Para os cabalistas, Adão surge como hermafrodita (outro toque feminino).
No Tarot, a Grande Sacerdotisa representa o aspecto mais profundo, mais subtil da fêmea, o aspecto misterioso, sombrio, oculto.
Na Grande Sacerdotisa poderemos ver a escuridão, o mistério, as forças psíquicas, o poder da Lua para agitar o subconsciente, a passividade e a sabedoria conquistada através dela.
Este segundo trunfo envolve-se principalmente com o sentido misterioso da vida, tanto aquilo que não conhecemos como o que não podemos conhecer. Fala-nos como um período de retiro passivo pode enriquecer nossas vidas permitindo acordar coisas interiores. Pode tornar a intuição tão forte que nos faz entender qual é a resposta correcta para um certo problema. Esta carta pode ainda alertar-nos para visões e poderes ocultos e psíquicos tais como a clarividência. É o lado mental do arquétipo feminino.
Resumidamente, temos na Sacerdotisa a representação das nossas habilidades desconhecidas, nossa sensibilidade, nossa intenção e uma confiança inexplicável mas muito enraizada. Ela é a expressão da paciência, da compreensão, da indulgência, da bondade, da disposição para perdoar e utilizar o poder das forças inconscientes para bem dos outros - como auxiliadora, curadora ou vidente.
No entanto, também podemos encontrar nela um lado sombrio e surge então a "irmã negra", a feiticeira que usa os poderes da alma para seduzir, paralisar ou prejudicar mas, há sempre relevância ao seu lado alegre e prestativo.
Exercício de meditação:
Sente-se ou deite-se com a coluna direita, coloque à sua frente a carta A Papisa. Feche os olhos, relaxe todo o seu corpo e mente. Respire profundamente, liberte com o ar todas as suas preocupações. Visualize diante de si o arquétipo da Papisa. Repita mentalmente, três vezes, a frase: "Eu ouço a sabedoria do meu coração e da minha alma".
Visualize-se no templo da Papisa, numa bonita noite de Lua Cheia. Ela está sentada no seu trono, o seu rosto transmite calma e serenidade e o seu olhar é maternal. Observe bem a Papisa. O que lhe transmite ela?
A Papisa tem ao colo o livro da sabedoria e do conhecimento. Ela convida-a a sentar-se a seu lado. Abra o seu coração e ouça com atenção tudo o que a Papisa tem para lhe dizer. Ela passa-lhe para a mão o livro da sabedoria, que lhe ensina a obter e a criar. Leia-o. A Papisa irá ajudá-lo/a a nutrir a sua alma e dar-lhe-á todo o apoio que necessita neste momento. Ouça todos os conselhos que ela lhe dá com o seu coração.
Devolva agora o livro à papisa. Agradeça a ajuda recebida. Retire-se da sua presença.
Aos poucos, faça desaparecer a imagem do templo, respire de forma profunda e saia do seu relaxamento.
Afirmações (conselhos) para a Papisa:
- Consigo reflectir de forma serena em todos os aspectos que perturbam a minha alma. Deixo que seja a minha intuição a guiar os meus passos.
- Eu sou a intuição.
- Eu sou a sabedoria.
- Eu sou a serenidade.

I - Mago

Vamos agora falar do Arcano maior com o número I - O Mago (este Mago pertence ao Tarot of the Spirit de Joyce Eakins publicado por US Games no ano de 1992).
Os baralhos mais antigos de tarot ilustravam o Mago como um ilusionista ou mesmo um malabarista. A maioria dos tarots modernos seguem o Tarot de Waite e apresentam o Mago erguendo, cuidadosamente, uma varinha mágica.
Temos representada, nesta figura a consciência, a acção e a criação pois ele simboliza a ideia da extracção de qualquer coisa real das possibilidades da vida e isto é apresentado com a colocação dos quatro símbolos dos arcanos menores, sobre a mesa que se encontra à sua frente.
A posição da maioria dos Magos, com uma mão apontada para o céu e outra para a terra, podemos afirmar que não está a fazer encantamentos ou a conjurar demónios, podemos sim, olhar para ele como um "pára-raios" pois ao abrir-se para o espírito (mão para cima) atrai a energia para dentro de si e depois encaminha-a para a terra, para a realidade (mão para baixo).
No Ocidente há a tendência para considerar o Mago como um manipulador, este tipo de imagem resulta um bocado dos próprios magos quando se prestam a fazer encantamentos, pelas mais variadas razões mas também vem um bocado da igreja que vê nos magos uma certa competitividade, pois estes tratam directamente com o espírito em vez de usarem os sacerdotes como intermediários.
Ainda podemos ver no Mago o xamã ou curandeiro.
Esta carta representa antes de mais, a consciência do poder, a possibilidade de iniciar projectos válidos e responsáveis, força de vontade perfeitamente canalizada para um objectivo.
Com a carta do Mago a pessoa tem a possibilidade de dirigir a sua força através da vontade para o seu objectivo definido. Quando olhamos para esta carta vimos aí representada a inteligência, a destreza e um propósito activo de vida. A sua energia é usada no momento em que enfrentamos os desafios com consciência e dominamos os problemas sérios.
Encontramos aqui o segredo da profunda harmonia entre o conhecido e o desconhecido e a certeza interior que daí resulta pode mover montanhas.
Exercício de Meditação
Sente-se confortavelmente, coloque à sua frente a carta O Mago. Olhe atentamente por uns instantes para este Arcano. Feche os olhos, relaxe o seu corpo e a sua mente. Inspire e expire profundamente, várias vezes sem pressa. Sinta todo o seu corpo a descontrair. Normalize a sua respiração e inicie a sua viagem. Imagine que está numa estrada de terra batida. Ao longe, avista uma pequena casa, uma casa simples. Dirija-se para lá.
A porta abre-se. À sua frente está um homem jovem, de cabelo loiro e de olhar vivo e brilhante.
Não tenha medo, pode entrar, este jovem é o Mago, ele está a trabalhar e sobre a sua mesa pode observar os seus instrumentos de alquimista. O Mago tudo pode, tudo transforma, ele tem o poder de captar as energias do Céu e da Terra. O Mago convida-o/a a aproximar-se da sua mesa, vá. Ele está pronto para ser agora o seu mestre, irá ensiná-lo/a a usar a sua força e energias para transformar o que for preciso na sua vida. Ouça-o com atenção. O Mago pergunta-lhe o que quer transformar, responda-lhe com sinceridade. Ele coloca à sua disposição a vara. Pegue nela. Com a vara é agora, capaz de dirigir a sua vida com equilíbrio, terá a capacidade de acção sobre todos os acontecimentos.
Entrega-lhe um escudo em ouro. Vista-o pois impedirá que perca as qualidades que agora adquiriu.
Sobre a sua cabeça derrama a sua taça de água. Como a água, irá ser capaz de deixar fluir os seus sentimentos e nunca terá medo de os expressar. Por fim, o Mago oferece-lhe o punhal. Com ele, será capaz de se libertar de todas as dores e de as transformar em experiências, em lições que o/a ajudarão a crescer.
Agora também é um mago, um pioneiro. Dentro de si está toda a habilidade para lidar com os desafios da vida. A sua visão da vida e dos problemas é clara e objectiva. Com determinação e garra, transforma as energias que o/a cercam.
Agradeça ao mago e despeça-se dele. Pouco a pouco, faça desaparecer a imagem do Mago. Saia progressivamente do seu relaxamento.
Afirmações (conselhos) para o Mago
- Cresço no ritmo perfeito do Universo, não temo o meu poder de comunicação.
- Escolho com clareza mental todos os meus caminhos.
- Eu sou a inteligência criativa.
- Eu sou a concretização.
- Eu sou a força de vontade.
- Eu sou a capacidade de escolher.

18 de setembro de 2008

O Louco

Vou hoje começar a falar de um tema que me apaixona: As lâminas de Tarot. Em cada post tentarei utilizar uma imagem de um baralho diferente (identificado) embora a maior parte das descrições que nós encontramos sejam do Tarot de Marselha ou de Rider-Waite que são os mais tradicionais.
Em todos estes posts que aqui vão surgir, baseei-me na descrição feita por Hajo Banzhaf, no seu livro "Guia completo do Tarot" e nas de Rachel Pollack no seu livro "Setenta e oito graus de sabedoria". Os exercícios de meditação para alguns Arcanos Maiores assim como afirmações (conselhos) foram baseados no livro de Gabriela Barros "Meditações com Tarot".
Este Louco que aqui vos apresento pertence ao Tarot of the Master desenhado por Giovanni Vacheta e publicado por Lo Scarabeo no ano de 2002.
Podemos pensar no Louco como um espírito totalmente livre.
O arquétipo do Louco encontra a sua expressão social como bobo da corte, a quem era permitido dizer ao rei, certas verdades que ninguém mais ousaria exprimir. Hoje em dia, os comediantes e humoristas gozam, de certa forma, deste mesmo privilégio.
Em alguns baralhos antigos de Tarot, o Louco aparecia como o bobo da corte gigante e o seu título era o "Louco de Deus". Este termo também foi usado para os loucos inofensivos e para os epilépticos graves, sendo todos considerados como estando em contacto com a sabedoria maior, justamente por estarem fora do contacto com o resto de nós.
Em Batman, o maior inimigo do herói chama-se Joker que é uma figura sem passado e que nunca é visto sem máscara. A rivalidade existente entre estas duas personagens é a mesma existente entre os que apoiam a lei e a ordem e aqueles que estão contra os valores sociais. Nos últimos anos o Joker é considerado mais como um insano do que como um criminoso.
O Louco representa aquela tradição do irmão ou irmã tolos, desprezados pelos outros irmãos mais velhos mas que no fim da história são os que conquistam a princesa ou o princípe porque são bondosos e funcionam por instinto.
Na maioria dos baralhos de Tarot o Louco é quase sempre acompanhado por um ajudante animal que tanto pode ser um cão, como um gato ou até mesmo um crocodilo. Este animal serve para simbolizar as forças da natureza e a parte animal do homem.
O saco que o Louco transporta consigo carrega as suas experiências, o bastão é, na verdade um ceptro, símbolo de poder.
Esta carta, realmente, encaixa-se em qualquer lugar do baralho e combina com qualquer Arcano Maior pois funciona como força animadora. Quanto aos arcanos menores, esta carta, tem mais afinidade com o naipe de Paus (ceptros) pela acção, pressa, movimento sem reflexão, mas também tem muito a ver com Copas devido à sua imaginação e à prioridade dada ao instinto.
Resumidamente o Louco mostra-nos a criança que existe em nós, o reinício espontâneo, a franqueza sem preconceitos. É a ligeireza despreocupada, a alegria descuidada, a entrada numa nova experiência de vida sem expectativas formadas por isso, o Louco tanto pode ser a irresponsabilidade, a ingenuidade insensata, o espírito brincalhão quanto a ignorância ou a sábia despretensão e a percepção humilde a que se pode chegar no final da longa e penosa busca.
O Louco tanto pode ser o traquinas e o malcriado quanto o único conselheiro honesto na corte. Para todos os efeitos, ele vive sempre no presente, sempre pronto a passar por novas experiências mas, esta atitude também pode ser devida à recusa em se tornar adulto.
Esta carta portanto, aponta sempre para novas experiências que, mesmo apresentando traços caóticos não representam nenhum perigo real.
Afirmações (conselhos) para o Louco:
- Sei arriscar com sabedoria, tomo sempre as melhores decisões porque não ajo de forma precipitada. Quando procuro novos horizontes, faço-o com felicidade e confiante nos meus sonhos.
- Eu sou a liberdade plena.
- Eu sou a alegria.
- Eu sinto o prazer de viver cada dia.

Lenda da Bela Infanta



Lendas de Portugal de Gentil Marques
Os sinos repicavam alegremente. Trocavam-se frases rápidas de assombro e encanto: "Como os noivos vão bonitos!..." "Ele parece um rei!..." "E ela? Tão linda, tão ricamente vestida, tão nova!..."
Era, na verdade, um casamento de amor. Viera gente de todos os lados para assistir à cerimónia. Embora doze anos mais velho ele vinha garboso, imponente, ao sair do templo, junto da sua jovem esposa. Era o Grande Capitão!! O maior herói do Reino! E as aclamações juntaram-se à aleluia dos sinos, ecoando nas almas...
Nesse momento em que tudo eram hossanas, só um homem acalentava sonhos de ódio. Era também poderoso, mas sofria! Sofria porque ela, a bela Infanta, preferira o outro!
Foi para casa, abatido, forjando vinganças. Não concebia a alegria do povo. Parecia-lhe idiota, tudo aquilo. E pensava. Pensava alto, no isolamento dos seus aposentos, na forma de conseguir o que sempre desejara. De súbito, bateu com a mão na testa exclamando:
- Achei! Achei a forma de levar a cabo a minha vingança! Sei o que hei-de dizer a el-rei. Sei bem como conseguir que el-rei o mande para longe! Não terão mais um dia de felicidade! E talvez sozinha... abandonada... a bela infanta acabe por esquecer o marido! E esquecendo-o... reparará em mim! É isso! ... Como pude levar tanto tempo a conceber uma coisa tão simples!...
O homem poderoso esfregou as mãos de contente. Depois, já mais calmo, preparou-se para escrever uma carta a el-rei, ciente já do bom acolhimento ao seu pedido, da resposta que viria rápida...
De facto, a resposta não se fez esperar, enviada directamente a casa do grande Capitão.
Ao inteirar-se da vontade de el-rei expressa nessa mensagem, o Grande Capitão ficou apreensivo. Sua esposa, que lhe espiava a expressão, perguntou aflita:
- Que se passa senhor meu esposo? Que lestes nessa carta que tanto vos atormenta?
O Grande Capitão suspirou fundo antes de responder:
- Senhora! O que vem nesta carta enche-me de espanto! Como é possível que el-rei me peça tão grande sacrifício, tendo eu casado apenas há seis dias?
- De que sacrifício falais?
- Acaba de chegar uma ordem de el-rei para que parta à frente da Armada, na guerra contra os infiéis. Já vedes, senhora, que é uma ordem para ser cumprida!
A jovem esposa fez-se terrivelmente pálida. Juntou as mãos. Murmurou:
- Como é possível tamanha crueldade vinda do nosso rei e senhor?
- Penso, meu amor, que isto deve ser obra de algum ruim conselheiro!
Ela foi junto do marido. Pegou-lhe numa das mãos e acariciou-a.
- Como podem a inveja e perfídia chegar junto de el-rei... Fostes sempre tão bom... tão generoso!... Não devíeis ter inimigos.
Ele meneou a cabeça.
Boa sois vós, senhora, que estais longe da maldade do mundo! Mas ficai sabendo que o mundo é mau. E os invejosos não perdoam a felicidade dos outros!
- Os olhos da jovem senhora inundaram-se de lágrimas:
- Que farei sem vós?
- Pensai em mim e encontrar-me-eis a vosso lado, hora a hora, minuto a minuto!
- Mas tendes de partir já?
- Tenho apenas mais três dias.
A bela infanta encostou a cabeça ao peito do marido. Chorava baixinho enquanto ele lhe acariciava os cabelos. Depois, levantou-lhe a fronte com ambas as mãos e beijou-lhe os olhos lacrimejantes, dizendo:
- Senhora, acreditai que a saudade será tanta que me fará voltar! É tudo quanto vos prometo!
Ela não respondeu. Mas o seu coração bateu mais forte, ao ritmo das lágrimas que corriam ligeiras.

A armada fez-se ao mar chefiada pelo Grande Capitão. Atrás, na alta varanda do palácio, ficou um lenço branco acenando. E mais ao longe, uns olhos ávidos de expressão diabólica, que seguiam sorrindo todo esse drama de despedida.
Só, a bela infanta deixou de ter alegria. Vivia atormentada, esperando notícias e desesperando se tardavam. As horas contavam como meses e os meses como anos! E um dia, a bela infanta deixou de ter notícias do seu bem-amado esposo. A angústia não a deixava comer nem dormir. Vivia momentos de desespero, enviando mensagens a el-rei no intuito de conseguir novas do Grande Capitão da Armada. Mas o rei, ou não respondia ou mandava-lhe dizer que também esperava notícias...
Um dia, em que a bela infanta levara a chorar angustiadamente, alguém chegou ao seu palácio e pediu para lhe falar. Correu a jovem ao encontro do desconhecido que, ao vê-la, se curvou numa respeitosa vénia.
- Senhora, trago-vos novas do vosso esposo.
Ela não pôde conter a ansiedade.
- Dizei, senhor! Sejam elas quais forem!
- Pouco vos sei dizer, no entanto sabemos que a Armada naufragou. Creio que morreram todos...
A infanta não pronunciou uma palavra, não soltou um ai: caiu desamparada no chão!
O alvoroço que secundou esta cena foi enorme, pois a jovem senhora era muito estimada de todos. Esteve doente quase um mês. Salvou-a a juventude e os cuidados do físico e das damas ao seu serviço.
Quando começou a melhorar e se levantou, pediu para subir à torre e de lá olhar o mar. Tentaram impedi-la mas ela insistiu:
- Quero enfrentar esse tirano que sepulta tantas vidas! E quero também voltar a falar ao mensageiro de tão tristes novas!
Logo se puseram à procura do homem distinto que ali estivera em certa tarde. Inexplicavelmente, ele apareceu logo a seguir. Entrou risonho como se o mundo fosse sempre um paraíso. Beijou a mão à bela infanta. Esta indagou serena:
- Dizei-me senhor: fostes companheiro de meu esposo?
O homem sorriu: 
- Disse-vos que morreram todos. Se ainda aqui estou... deveis compreender que não fiz parte dessa expedição.
- Foi então el-rei que vos mandou a minha casa?
- Também não, senhora.
- Então... porque viestes?
- Porque não podia ver murchar tão bela flor sem nada fazer para a salvar.
- Que quereis dizer, senhor?
- Que há muito vos admiro! Sou poderoso e tudo quanto desejardes poderei oferecer-vos!
- Tudo?
Animado, ele continuou:
- Tudo, senhora! talvez até o próprio reino!
Com uma serenidade que ela própria desconhecia, perguntou:
- Podeis acaso restituir-me meu marido?
Ele encarou-a, perplexo. Depois recompôs-se.
- Senhora, desculpai que vos diga... mas estais errada! A vida que recebemos é para ser vivida e não para desperdiçá-la!
- Já não tenho alegria!
- Eu vo-la darei de novo! Basta que aceiteis casar comigo!
A bela Infanta levantou-se, a lembrar-lhe que a entrevista chegara ao fim. O homem levantou-se também. Mas antes de retirar-se declarou:
- Não desistirei, senhora! Os mortos não voltam. E para os vivos é que o sol se levanta todos os dias!

Tal como dissera, o homem poderoso não mais largou a bela infanta. Visitava-a três vezes por semana. Impunha-lhe a sua presença com tanta força de vontade que ela sentia-se impotente para o mandar embora. Todavia, no íntimo do seu ser, pedia a Deus que lhe restituísse o marido perdido ou a levasse também.
Um dia em que o homem poderoso estava de visita à bela Infanta, notou-lhe uma expressão desusada. Perguntou, curioso:
- Senhora, pareceis mais leve... menos pesarosa... Será que a vossa saudade vai diminuindo? Se assim é, dou-me por feliz!
A bela infanta sorriu.
- Se isso vos agrada, vou esclarecer-vos quanto à minha disposição menos sombria, Sonhei hoje que meu marido regressara ao reino!
Ele riu.
- Que ideia! Já vos disse que os mortos não voltam!
Da entrada do salão, uma voz soou:
- Quem sabe senhor? Às vezes até os mortos voltam!
A bela infanta deu um grito. O recém-chegado correu para ela. Abraçaram-se. Confundiram suas lágrimas.
Desesperado, o homem poderoso quase gritou:
- Garantiram-me que a armada se perdera!...
- E perdeu!
- ... que tinham morrido todos!
- Quase todos. Mas quis Deus fazer-me voltar para impedir mais uma das vossas ciladas. Sei agora quem foi que arquitectou a minha saída!
- Como o sabeis?
- Acabo de chegar do palácio real! A vossa intriga foi desfeita! E agora saí, enquanto a minha espada não vos procura lá fora.
A infanta agarrou uma das mãos do esposo.
- Não, não queirais bater-vos com esse demónio, agora que voltei a encontrar-vos!
- Já não temo os demónios depois de voltar do Inferno em que me vi! E se ele é demónio, ou alma ao seu mandado, que rebente! Deus está comigo!
Nesse mesmo momento, ouviu-se um grande estoiro e o palácio abanou como se fosse ruir. Quando, porém, tudo voltou à normalidade, o homem poderoso e mau, havia desaparecido como o fumo! Então, felizes de novo, a bela Infanta e o Grande Capitão renderam graças ao Senhor por tamanho milagre.

E assim acaba esta lenda e mais uma história de amor à boa maneira portuguesa... Vou tentar descobrir mais.

12 de setembro de 2008

A Senhora que passou



Lendas de Portugal de Gentil Marques
Foi há muito tempo que tudo isto aconteceu...
Esta é a frase que o povo saboreia ao dizer e saboreia ao escutar. E nós vamos usá-la também, visto que foi da própria voz do povo que esta lenda chegou até nós.

Foi, pois, há muito tempo que tudo isto aconteceu.
Na estrada, talhada pelo homem, na sua ânsia de comunicação, viajava uma jovem, acompanhada de seu pai. Ninguém sabia de onde vinham, nem para onde se dirigiam. Uma auréola de mistério pairava à sua volta. Mistério que ambos defendiam, não fosse um gesto, um passo ou um simples palavra desvendá-lo.!
Junto a um rochedo que espalhava boa sombra, os dois viandantes pararam para descansar. Pai e filha abrigaram-se o melhor possível. O velho, porém, continuava com o rosto enrugado pela preocupação. A jovem tentou serená-lo:
- Então, meu pai! Essa ansiedade mata-o!
Ele acenou com a cabeça, num sinal afirmativo.
- Bem o sei, filha! Mas isto é superior às minhas forças! Olha que é necessário que ninguém saiba quem somos!
A jovem sossegou-o:
- Fique descansado. Não quero vê-lo tão aflito por causa disso. Ninguém o saberá!
O velho teve um trejeito de dúvida.
- Tenho tanto medo, minha filha... tanto medo!... Se nos descobrissem...
A rapariga interrompeu-o:
- Que ideia, meu pai

Mas ele continuou, sentencioso:
_ Viste aquele criado que ontem se ofereceu para nos acompanhar?
- Vi, sim, meu pai!
- Pois era um espião, o que ele queria era saber tudo a nosso respeito!
A donzela sorriu.
-- Então, meu pai! Não está a exagerar?
O velho mostrou-se ofendido.
- Não, minha filha, não exagero! E acredita que precisamos de ter mais cuidado em cada dia que passa!
Olhando um ponto vago, a jovem sorriu. Porém o velho voltou a adverti-la:
- Não te esqueças que não deves falar com desconhecidos, nem mesmo sorrir-lhes!
A rapariga olhou o pai.
- Nem mesmo sorrir-lhes? Mas... que mal nos poderá trazer um sorriso?
Voltou o velho a enervar-se.
- Sorrir é, por vezes, um convite à intimidade. E nós não podemos ter intimidade seja com quem for, entendes?
- Sim, meu pai
- Vamos!
- Já?
- Ainda estás cansada?
- Não, mas... tenho tanta sede!
O velho olhou em volta. Terra, arbustos e rochedos, tudo envolvido pelo braço quente do sol, eram uma perfeita negativa ao apelo da jovem. Meneou a cabeça num gesto que lhe era habitual.
- Aqui não há água. E a que trazemos, como sabes, já se esgotou.
A jovem suspirou.
- Está tanto pó... e tanto calor!... Onde iremos encontrar água? Se houvesse aqui perto um riacho...
O velho não respondeu. A jovem tomou novo ânimo.
- Posso ir procurar!... Talvez para lá daqueles rochedos...
Aliou o gesto às palavras e levantou-se, ágil como uma gazela. O velho recomendou:
- Tem cuidado... Não te afastes!...
Saltitando como uma cotovia, a jovem foi em busca de um fio de água que a refrescasse. O velho ficou só. Na sua frente, a estrada sinuosa era um convite à caminhada. Mas deixou-se ficar ali, molemente sentado numa desconfortável saliência granítica - a melhor cadeira que, no momento, a natureza lhe ofereceu.

Saltitando sempre, a jovem foi caminhando. De súbito, os seus olhos iluminaram-se-lhe maravilhados. Descobrira um riacho! Um riacho que saltitava também, de pedra em pedra. Sorrindo de alegria pela descoberta, ela correu, inclinou-se, e fazendo da mão uma concha encheu-a de água e levou-a aos lábios. Sofregamente, bebeu mais. Que bem que a água lhe sabia! Debruçou-se mais ainda e olhou-se na transparência da água. Reflectiu-se nela uma imagem confusa. Tirou o pó da cara. E foi então que uma voz serena e bela, uma voz máscula, lhe sussurrou aos ouvidos:
- Por vós, transformar-me-ia num rio, se necessário fosse!
A jovem soergueu-se aterrada. Olhou em volta. O único sinal de vida dava-o um passarito que também viera beber no riacho. Falando consigo própria, a jovem murmurou:
- Ia jurar que ouvi uma voz... uma voz de homem... No entanto, não está aqui ninguém...
Como resposta, a voz voltou a soar:
- Enganais-vos... Também eu estou aqui... e bem perto de vós!
Ela voltou a olhar á sua volta.
- Mas... não vejo ninguém... Quem é que me fala?
- Sou eu... Olhai para baixo, para a minha água... Acariciai-a de novo com as vossas mãos... Voltai a olhar-vos no espelho que vos ofereço. Como é linda a vossa imagem!
A donzela sentiu o coração bater-lhe forte.
- Estarei louca... ou o riacho pode falar como um homem?
- Não só falar... como amar! Sim... sou eu, o riacho, quem vos fala. Ou antes... é o espírito deste riacho que vos contempla.
Aturdida, a jovem murmurou:
- Que estranho! Como pode isso acontecer?
- Eu vos conto. É velha sentença que qualquer riacho, como eu, quando é descoberto, pela primeira vez e a pessoa que o descobre é uma donzela, pode falar... ouvir... e até amar!
O espanto tomava a jovem como prisioneira.
- Um riacho?
- E que tem? Por vós senhora, transformar-me -ia num rio... Basta uma palavra vossa... basta que os vossos lábios me toquem e me digam baixinho: amor!
Cada vez mais atónita a jovem exclamou:
- Não é possível!
Insinuante, a voz voltou a ouvir-se:
- Experimentai...
E conta-se que a jovem sentiu um desejo enorme de se inteirar de toda a verdade. Inclinando-se suavemente sobre o fio de água, pronunciou com ternura:
- Amor!
No mesmo instante uma voz sua conhecida soou ao longe:
- Joana! Joana! Onde estás minha filha?
Num movimento rápido, Joana ergeu-se ao encontro do pai.
- Estou aqui! Consegui matar a sede!
Ofegante pelo susto e pela correria, na sua idade o velho tornou:
- Já estava desvairado pensando que te tinhas perdido! Não voltes mais a sair de ao pé de mim!
Sem contar a sua aventura, com receio que o pai a tomasse por louca, a jovem tentou disfarçar o nervosismo de que ainda estava possuída.
- Já não há motivos para ter receio, meu pai!
- No entanto... a tarde começa a cair e não poderemos ficar, de noite, neste ermo. Vamos depressa!
- Como queira, meu pai.
E, lado a lado, seguiram viagem os caminhantes dessa estrada do Norte.

Todavia, um ruído surdo, estranho, enigmático, seguia essa jovem e esse velho pelo caminho que iam percorrendo. Era como se a terra se estivesse abrindo de mansinho... muito de mansinho...
A noite começou a cair. Uma noite sem vento e sem luar. As horas caminhavam também, mas num passo incompatível com a marcha do velho. Assim, era já noite quando os viajantes chegaram a uma terreola na qual pediram guarida para descansar. Facto estranho, porém, se verificou então: o ruído que os havia perseguido, cessara também, com o cessar da sua marcha! De tal forma esta certeza tomou o velho, que este sentiu necessidade de consultar a filha.
- Joana... Tu ouviste... o que eu ouvi?
A jovem perturbou-se.
- Que ouviu o meu pai?
- Um ruído estranho, que nos perseguiu sempre e agora parou...
Joana mentiu, disfarçando o seu embaraço.
- Não dei por coisa alguma...
Ele voltou a menear a cabeça, naquele seu jeito já tão conhecido da jovem:
- Aqui anda coisa! Teremos de ficar alerta esta noite. Receio que sejamos atacados.
Ela perguntou, levemente inquieta:
- Atacados... por quem?
- Pelos nossos inimigos ocultos!
Joana olhou-o receosa mas nada disse do seu segredo. Então, para a acalmar, o pai passou-lhe a mão pelos cabelos.
- Deita-te minha filha e dorme descansada. Eu ficarei a velar.
Ela informou-o rapidamente:
- Não tenho sono, meu pai. Ficarei velando em seu lugar.
mas o velho insistiu com autoridade:
- Se não tens sosno... faz por que ele venha! Quero que descanses alguma coisa. Quem sabe se teremos de abalar de madrugada?
Depois, com mais ternura na voz:
- Vamos! Deita-te e dorme.
A jovem retirou-se; o velho ficou.
A certa altura da noite, Joana levantou-se com precaução. À sua volta o silêncio era aflitivo. Os receios que tanto apoquentavam o pai, dominavam-na nesse momento. Procurou-o e foi encontrá-lo dormindo sossegadamente. O medo desvaneceu-se. Então, um desejo enorme assaltou-a: ir ver se o riacho tinha cumprido sua promessa e tinha vindo atrás dela, até ali. Aquele ruído não poderia ser de outra coisa...
Cautelosamente, Joana saiu. Na noite escura, embora estrelada, a jovem procurou o riacho. E o seu espanto foi enorme ao verificar que não era apenas um riacho que estava na sua frente, mas sim um rio caudaloso e bonito!...
Sem saber o que pensar a jovem murmurou:
- Afinal... sempre era verdade!...
E aquela voz bonita, já sua conhecida, voltou a soar aos seus ouvidos:
- Vede, senhora, com os vossos próprios olhos, o que uma simples palavra pode fazer!
De novo, perplexa, Joana perguntou:
- Mas... continuareis sempre a crescer?
- Infelizmente, não! Um riacho nunca poderá ir além de um rio! De contrário, por vós, transformar-me-ia em oceano!
A curiosidade assaltou a donzela.
- Tendes só voz? Não tendes figura?
- Gostaríeis de ver-me?
- Ai! Gostaria tanto!
- Senhora... Diz a tradição que se me mostrar a alguém... somente durarei mais um dia. Depois a minha figura desaparecerá confundida com as águas do meu próprio rio.
Ela enterneceu-se:
-Não, assim não quero! Não mereço tamanho sacrifício!
A voz bonita soou então, envolta em certa tristeza.
- E de que me serve a existência, se vivo aqui escondido, se olhos humanos não me podem fitar?... Prefiro um dia de vida, sob o vosso olhar enternecido! Vede, senhora: aqui estou!
Joana levou as mãos à boca num assomo de espanto.
- Um homem! Sois realmente um homem?...
- Para vos amar, senhora!
- Ainda julgo sonhar!
Perto, a voz do velho soou então, furibunda:
- Joana! Atraiçoaste-me! Foste ter com um homem!
- Senhor meu pai... eu explico-vos!
- Não quero explicações! Vamos, caminha!... Já não terás descanso senão no fim da nossa jornada! E meteremos pelos atalhos de mais difícil acesso, embora isso me custe, para que nos percam de vista e não descubram o nosso segredo!
Pai e filha não tardaram em desaparecer. O rio feito homem ficou ali a recordar a figura graciosa da donzela que se afastava. E diz-se ainda que, no dia seguinte, muita gente ouviu uma voz estranha vinda dos lados do rio e que perguntava com ansiedade:
- A senhora passou por aqui?... Respondei-me por favor! Passou por aqui? Passou?...
Os sábios mais sisudos dirão que não foi essa a pergunta, mil vezes repetida e ouvida por alguns que já não são deste mundo, que deu o nome àquelas terras. Mas, fosse pelo que fosse, toda aquela extensão de terreno a umas três léguas de Vila Verde, no distrito de Braga, ficou para sempre a chamar-se Passô. E o rio que a banha, por singular coincidência, tem o nome de rio Homem!

10 de setembro de 2008

Lenda dos Aroches


"Do Livro "Lendas de Portugal" de Gentil Marques"
No ano 39 da nossa era governava, em Roma, Caio Germano Calígula. O seu carácter doentio e sanguinário só lhe grangeara inimigos. E os que o serviam, ou eram iguais a ele, ou faziam-no apenas por medo. Certo dia, conta a nossa lenda, que não fica longe da história - o jovem romano Licínio Balbo foi obrigado a comer à mesa do imperador com o cavalo deste - o célebre "Incitatus" - ao qual eram prestadas honras de primeiro cônsul! Revoltado com tal desaforo, Licínio abandonou Roma e entrou, clandestinamente, na Andaluzia.
Há muito tempo que não chovia. Os campos de Aroche mostravam a desolação motivada pela sede das suas árvores e arbustos. Fazia calor, um verdadeiro calor andaluz. Mas no palácio de Flávio Valério havia defesa contra a alta temperatura. E Flávio, aquele que governava Aroche em nome de Roma e de Calígula, era bem digno do seu senhor! Por isso o povo oprimido o odiava. Odiava-o e temia-o. Mas o governador tinha o poder nas mãos, carta branca para qualquer represália ou castigo. E sabia-se temido, embora não ignorasse que não era respeitado. Porém, para um devasso como Flávio Valério, a opinião do povo não interessava. E se algum dos seus súbditos mais categorizados ousava proceder de forma diferente e criar um pouco de simpatia entre os governados, Flávio Valério mostrava logo o seu pesado desagrado.
A cadeira de grande espaldar onde Flávio se recostara gemeu sob o peso do seu corpo, não muito pesado, é certo, mas demasiado entregue à lassidão. O governador de Aroche pensava. Pensava naqueles que mandara chamar e deviam estar a aparecer. E gozava já, antecipadamente, da alegria de ver amachucado e ferido no mais íntimo do seu orgulho aquele que viera de Roma comandar meia centena de homens e tomava agora atitudes de amigo ou pai do próprio povo.
Os pensamentos de Flávio Valério foram cortados pela aparição de um soldado dizendo que estavam à porta as pessoas que mandara chamar. Levantando a cabeça num ar importante e sorrindo com maldade, Flávio Valério mandou levantar o reposteiro e tentou ser amável:
- Entra Júlio Decêncio e traz a tua filha! Precisamos conversar!
O homem que acabara de dar entrada no salão, era de meia idade e tinha no rosto uma expressão dura, embora franca. A seu lado, linda na sua simplicidade, sua filha Márcia nem se atrevia a olhar em volta. O homem de meia idade cumprimentou o dono da casa:
- Salve, Flávio Valério! Que me queres?
O governador sorriu, olhando a formosa donzela e respondeu com um grosseiro comentário:
- Que tesouro possuis, Júlio Decêncio! A tua filha decerto agradaria ao nobre Calígula!
Júlio Decêncio tornou mais dura a sua expressão.
- Se foi para me ofenderes que me mandaste chamar, retirar-me-ei imediatamente!
Flávio olhou-o com cinismo. Falava pausadamente, como quem mede cada uma das suas palavras.
- Não sejas tão soberbo! Se tens a sorte de possuir como filha uma mulher lindíssima, tens todavia a desgraça dessa mesma mulher tomar atitudes suspeitas a Flávio Valério e a Roma!
O militar franziu as sobrancelhas.
- Suspeitas? Que queres dizer, Flávio Valério? Explica-te!
Tornando-se subitamente sério e agreste, embora sem subir de tom, o governador de Aroche declarou:
- Diz-se que a tua filha Márcia é afecta à causa de Tiago, o filho de Zebedeu! E já a ouviram falar de Cristo!
O velho militar olhou a filha numa interrogação de aflitiva surpresa. E indagou:
- Márcia! Acabam de fazer-te uma grave acusação. É verdade o que Flávio Valério afirma?
Márcia olhou o pai com tristeza. O seu ar humilde desaparecera, sem contudo se mostrar arrogante. Respondeu, serena:
- Meu pai... Os grandes de Roma não gostam de ser desmentidos!
Júlio Decêncio irritou-se.
- Mas Flávio não está em Roma, está em Espanha!
Suavemente, Márcia acrescentou:
- Onde governa o nome de Calígula!
Atarantado, o velho militar olhava ora a filha, ora o governador de Aroche. Este sorria mais abertamente. Continuava a gozar com o desespero do seu compatriota e sentenciou:
- Ouviste a tua filha? Aqui não és tu quem governa Aroche, pois tens na mão meia centena de plebeus. Quem governa sou eu que represento Roma! Compreendeste?
Ia continuar a sua reprimenda quando descobriu junto ao reposteiro da entrada do salão, um jovem de aspecto altivo e desembaraçado. Tornou a sorrir e comentou:
- Vejo ali à porta alguém que muito interessa ao nobre Calígula e, por consequência, a mim próprio! Entra, cidadão Licínio! E os guardas que te apanharam e trouxeram que fechem bem as portas!
Licínio entrou com desembaraço, sorria também e, quando falou, havia bastante ironia na sua voz.
- Estás contente por me teres descoberto? É na verdade, uma grande proeza que irá agradar ao teu amo!
Pela primeira vez, Flávio Valério mostrou-se verdadeiramente irritado.
- Amo, dizes? Não! Ele é nosso imperador!
Sempre ironizando, Licínio retorquiu:
- E o seu cavalo, mais do que tu!
- Vê como falas do nobre Calígula!
Olhando de frente, bem nos olhos, o governador de Aroche, o jovem declarou:
- Desprezo Calígula com todas as forças da minha juventude!
- É pena que estejas destinado a morrer tão cedo!
Desconhecendo ainda os outros dois personagens que assistiam a esta cena, Licínio replicou:
- Não és tu quem pode decidir da minha vida e da minha morte.
- Quem pode então? O tal Deus que anda por aí na boca dos rebeldes?
- Não o conheço ainda, mas não me repugna acreditar que será mil vezes superior a Calígula!
Foi a vez do governador parecer recordar-se do militar e de Márcia. Voltando-se para o homem, declarou com certo escárnio na voz:
- Júlio Decêncio! Talvez tua filha Márcia possa ajudar o cidadão Licínio. Ele diz que não o conhece ainda. Compreendes? Ainda!
Licínio olhou a Jovem e não escondeu o seu interesse. Márcia não deixou que fosse o pai a responder. Serenamente e com dignidade humilde, declarou apenas:
- Pudesse eu ser prestável ao meu semelhante!
Flávio troçou;
- Semelhante? Que palavra estranha! Creio que é usada frequentemente por Tiago.
- Na verdade, o caso não constitui segredo visto que o nobre Valério também a conhece.
Com admiração sincera Licínio exclamou:
- Eis uma mulher como deviam ser todas em Roma!
- Bela, não é verdade, Licínio? Por isso a vou recomendar a Calígula!
- Não o farás! Márcia é minha filha, não o esqueças! Por ela exporei a vida!
- Veremos o que decide o nosso Imperador!
Júlio Decêncio voltou a falar
- Terás de haver-te comigo e com os meus homens, Flávio Valério!
- Isso é uma ameaça? Que ideia a tua! Pois vou dar-te um conselho. Cuidado Júlio Decêncio! Tenho visto outros serem mortos por muito menos.
O militar empalidecera, mas a sua expressão e voz continuaram duras.
- Pois faz o que entenderes! Vem Márcia! Esta casa é pequena demais para nós!
- Vai-te! Vai-te beldade! Em breve voltarás! ...
Quando ambos saíram, Licínio olhou o governador cara a cara.
- Agora já podes dizer o que pretendes de mim. Também me queres mandar a Calígula?
- Sempre o mesmo este jovem Licínio. Sabes? Formei outro projecto que me sabe bem melhor...
- Não me soou bem a tua voz
- Que pena! Julguei que irias agradecer-me o deixar-te livre!
- Compreendo-te. Queres apanhar-me com mais segurança. Conheço os processos de Roma!Mas vou ser, uma vez ao menos, obediente: Vou sair e já!

Passaram-se alguns dias, calmos e claros sem que a sombra de Flávio os viesse enegrecer. Refeita do susto que tivera Márcia recomeçou a sua vida normal.
A manhã começara a romper. Embuçada, num manto negro, Márcia saiu de casa, rodeou a esquina da rua com passos apressados. De súbito, estacou. Sentia-se seguida. Tapou melhor o rosto e voltou-se. Um homem também embuçado, dirigiu-se para ela e deu-se a conhecer.
- Salve Márcia, a mulher mais destemida que encontrei!
-Salve nobre Licínio Balbo!
- Sabeis já quem sou? Conheceis o meu nome?
- Depressa tentamos saber o que nos apoquenta o espírito...
- E eu tive a sorte de entrar nos teus pensamentos?
- Desde que te vi em casa de Flávio, pareceste-me um homem honrado
- Grande a minha alegria pelo conceito que de mim fazes. Deves calcular que também tu me interessaste, visto que te segui e a esta hora. Há cinco dias que te espreito. E receio por ti pois sei quanto vale Flávio. Mandou seguir-te...
E por ti não receias? Eu sei que ele me mandou seguir por isso saio a esta hora imprópria.
- Só depois de te conhecer soube o que era o receio. Desejo defender-te. Concedes-me essa graça?
- Márcia, tenho visto que estás exposta a grande perigo. Bem sabes o que aconteceu ao Nazareno e a muitos que o seguem.
- Sou tão feliz agora! É tão doce a doutrina de Jesus! Se a conhecesses...
- Ajuda-me a conhecê-la.

Desde este dia que Licínio passou a ser visita de Márcia e Júlio Decêncio. Mas no meio desta felicidade, não tardou que surgisse uma nuvem negra. Alguém viera avisar Licínio que se preparava o rapto de Márcia para as primeiras horas do dia seguinte. Quando Júlio Decêncio foi informado, o sangue do velho militar ferveu:
- Vou matar Flávio ao seu palácio!
- Não vá, meu pai! Não quero sangue derramado por minha causa.
Licínio, já mais calmo, propôs:
- Márcia sairá esta mesma tarde de Aroche com metade dos teus homens e sob o teu comando, cidadão Júlio Decêncio. Entretanto eu ficarei com a outra metade a proteger a retirada. Entrarão na Lusitânia e lá procurarão abrigo e reforços.
- Talvez não seja desacertado o teu plano. Conheço uma terra onde tenho alguns amigos. Iremos para lá.
- Meu pai, uma filha deve acatar as ordens daquele que lhe deu o ser. Não serei desobediente. Mas, se me é permitido direi que sem Licínio a minha estada será um constante suplício.
- Márcia - responde Licínio - Compreendo-te e amo-te ainda mais se possível for, por isso mesmo quero salvar-te
- Pois bem, então partamos com destino igual mas em pequenos grupos. Formaremos uma nova Aroche, sob o signo de Deus, onde seremos todos felizes.
Foi assim, segundo conta a lenda, que se fundou na Lusitânia a nova Aroche, a qual com o decorrer do tempo o povo passou a chamar ARRONCHES.

8 de setembro de 2008

Lenda de Freixo de espada à cinta



Como sabemos, o nosso Rei D. Dinis nunca se entendeu muito bem com o seu filho, o príncipe D. Afonso.
Soube-se na Corte que D. Afonso tinha armado umas zaragatas para os lados de Bragança, já muito pertinho da fronteira espanhola e D. Dinis lá se meteu ao caminho, com os seus melhores cavaleiros para "castigar os prevaricadores e salvar os inocentes".
Nesta altura, D. Dinis estava mesmo zangado com o filho pois, fazia-lhe todas as vontades, umas vezes porque a el Rei, lhe apetecia, outras porque a Rainha D. Isabel, sua esposa, lhe pedia.
Já decorria o caminho de regresso quando passaram por um terreno onde estava um freixo, plantado à beira do caminho, que fazia uma sombra enorme, acolhedora. O Rei achou aquele lugar tão agradável e tão cheio de paz que mandou os seus cavaleiros montarem acampamento um pouco mais adiante, aproximou-se da enorme árvore, tirou a espada e pendurou-a nos ramos, junto com o cinto.
Sentia o corpo cansado de tanta cavalgada e tanta luta, por isso, estendeu-se no chão espreguiçando-se, absorveu uma golfada de ar puro e, encostando a cabeça ao tronco do freixo, adormeceu.

Segundo conta a lenda, o rei começou a sonhar e, nesse sonho, apareceu-lhe um velho de longas barbas brancas que trazia à cintura a sua própria espada.
O Rei surpreendido, perguntou ao ancião quem era ele e o que pretendia. E, com uma voz profunda e estranha que parecia vir do fundo de uma caverna, ele respondeu:
- Sou o espírito desse freixo a que te encostaste. Estava encantado desde que aqui morri mas tu, quebraste o encantamento porque és rei e penduraste a tua espada no meu tronco, por isso, posso viver por alguns momentos...
- Mas, afinal, ainda não me dissestes quem sois?
- Sou um velho rei visigodo e também conquistei terras e dominei povos. Um dia, adormeci à sombra deste mesmo freixo e os meus inimigos, aproveitando a ocasião, mataram-me. Mas tu, podes estar descansado porque, a ti, nada te acontecerá.
- Que sabeis vós da minha vida, bom Rei?
- Sei tudo. Até sei o modo como encontrarás a felicidade entre ti, a Rainha Isabel e o vosso filho.
D. Dinis que não era conhecido por ter bom feitio, respondeu logo que a Rainha estava sempre do lado do filho e contra ele.
- Ela é uma óptima mãe, uma excelente esposa e, em grande parte, és tu o culpado das coisas que acontecem. Deves dar mais ouvidos à Rainha.
- Está bem, darei mais atenção à rainha. Mas então, o que hei-de fazer com o meu filho?
- Escuta Dinis, escuta com atenção porque é segredo...
E, diz a lenda, que o ancião fez com que o Rei o ouvisse, sem palavras, sem mexer os lábios, só com o pensamento.
- Oh! Mas isso é uma ideia perfeita! Como é que eu ainda não tinha pensado nisso?
E com os seus impulsos habituais (até em sonho) tentou erguer-se e nem ligou mais à voz que lhe dizia:
- Espera Dinis... Falta ouvires o resto... senão ficará tudo na mesma.
Mas já era tarde. Com a sua excitação acordou e viu-se de novo, sozinho, junto do freixo.
Olhou a árvore atentamente, e pensou:
- Meu Deus! Como aquele rei visigodo era parecido com este freixo. Parecia o próprio freixo de espada à cinta.
E, a pouco e pouco, de boca em boca e pelo país fora até que, logicamente, pela tradição, aquela zona passou a chamar-se:
Freixo de Espada à Cinta.
E tudo se passou como no sonho. D. Dinis conseguiu tréguas com o filho, durante algum tempo mas a guerra entre os dois voltou a acender-se.

6 de setembro de 2008

Lenda da Maia



Esta lenda também a li no livro de Gentil Marques e contava assim:
Estava-se em pleno mês de Maio, a Primavera já chegara há algum tempo e o campo estava, naquela altura do ano em que se encontra mais florido.
Mestre Chico também andava tratando da sua terra, especialmente da sua vinha mas, vieram avisá-lo que sua mulher começara em trabalho de parto e era bom que ele fosse para junto dela. Mestre Chico largou tudo o que estava a fazer e foi correndo por aqueles campos fora, com um aperto no coração mas, ao mesmo tempo, com uma grande alegria. Ia nascer o seu primeiro filho.
Lá bem no fundo, as suas preferências iam para um rapaz, mas enganou-se, o parto foi fácil e, quando chegou a casa, já lá tinha a sua menina.
Era uma bebé linda, rechonchudinha, de mãozinhas papudas, cheias de covinhas e que tinha um perfume estranho mas muito agradável, que se espalhava por toda a casa.
Passados os primeiros meses de novidade, os pais começaram a ficar preocupados com o olhar intenso daquela criança como se quisesse transmitir alguma coisa e aquele perfume que sempre a acompanhava.
Os pais começaram a ficar receosos e a mulher pediu a Mestre Chico que fosse contar ao senhor Padre, não fosse alguém invejar a criança ou desejar-lhe mal por ela ser assim.
O pai assim fez e, enquanto isso e, enquanto isso, a mãe voltou para junto de sua filha para a observar melhor e, conta a lenda que, nessa altura, a menina lhe sorriu e, ao mesmo tempo, se começou a ouvir uma música linda, vinda não se sabia de onde. O tempo foi passando, o Chico nunca mais voltava e a mulher, preocupada, ajoelhou-se junto da criança e começou a rezar.
O Chico regressou daí a pouco mas trazia o Padre consigo.
- Que linda menina vocês aqui têm... Bendito seja Deus por vos ter dado presente tão maravilhoso!
- Mas, senhor prior, não ouvis esta música? Não sentis este cheiro?
- Talvez tenham razão, certamente que Deus quis que esta criança trouxesse o perfume e a música das flores da Primavera, mais precisamente do mês de Maio.
- Senhor Padre e acha que não há mal aqui?
- Mal em quê, minha filha?
- E o resto da gente da terra não se irá rir de nós por termos uma filha assim?
- Não, meus amigos! Não há razão para rir, vocês têm uma filha maravilhosa... É uma verdadeira flor de maio. Olha, chamem-lhe Maia quando for a baptizar.
E assim foi.

Os anos foram passando e os pais sempre esconderam aquela criança, com medo que os outros se rissem ou lhe desejassem algum mal.
A Maia, já moça, sofria com este procedimento e um dia, perguntou aos pais a razão.
- Sabes filha, tu és diferente. Não sentes o perfume que anda sempre à tua volta? Não ouves a música quando sorris?
Chegou então a história aos ouvidos do Padre que se recordou nunca mais ter voltado a ver aquela criança desde o baptizado.
Sem mais demoras, o Padre dirigiu-se a casa dos pais de maia e falou-lhes duro:
- Não vos entendo, têm uma menina linda e têm vergonha de a mostrar? Será que estão no vosso perfeito juízo?
- Nunca gostei que troçassem de mim e dos meus - disse o pai para dizer alguma coisa.
- Quantos anos tens, minha filha?
- Não sei, nunca me disseram.
- Vai fazer treze - respondeu a mãe, a medo.
- Treze anos encerrada nesta casa
- Vem minha filha, vem para a casa de Deus. Aí poderás sorrir sempre que queiras.
No dia seguinte, depois de terminar a missa, apresentou-a a toda a gente da terra.
- Vejam, a menina de que vos falei - e empurrou-a meigamente para a frente- é uma flor... tem o perfume das flores... Maia foi o nome que lhe dei, Maia será para nós a alma do mês de Maio, o mês das flores, do perfume e da música.
E conta ainda a lenda e manda a tradição que ainda hoje, durante o mês de Maio, se procurem nos campos, umas pequenas flores amarelas de nome "maias" e aquele que encontrar uma que tenha perfume e música, encontrará a felicidade.
De tal modo se espalhou a fama da menina-flor, com sorriso de perfume e música que, aquela terra começou a ser conhecida por terra da Maia e, mais tarde apenas por DAMAIA.

3 de setembro de 2008

Lenda da Princesa Fátima


Neste tempo de férias aproveitei, como é meu hábito, para meter o nariz em alfarrabistas e encontrei uma colectânea que achei maravilhosa sobre lendas de Portugal (da autoria de Gentil Marques) e pensei logo em compartilhá-las convosco.
Aqui vai a primeira que se chama: Lenda da Princesa Fátima.
Vem correndo de geração em geração que a Princesa Fátima, jovem e bela princesa moura, ainda mais bela do que jovem, vivia recolhida no seu palácio, em tempos que se perdem na memória do próprio tempo. E vivia feliz.
Era filha única do Emir - e tal privilégio dava-lhe direito a ser tratada como verdadeiro tesouro. Seu pai, temeroso de que a vissem - e maculassem com o seu desejo - os olhos ambiciosos dos cristãos, mandara construir só para ela, uma pequena torre, ricamente mobilada, onde Fátima passava dias e noites, tendo por única companhia a tagarelice das aias.
De todas elas, a jovem e bela Fátima escolhera para confidente a mais velha e experiente. A mais fiel, também. Cadija era o seu nome.
Certa tarde, quando o calor do meio do ano punha preguiças no corpo e na voz, Fátima buscou ficar sozinha com Cadija.
- Que me quereis, Princesa?
- Fala-me de tudo o que sabes...
- Mas de quê, Senhora?... Da Festa das Luzes?... Do vosso formoso primo, o príncipe Abu?
- Não, não quero que fales a tal respeito... Já me disseste tudo quanto sabias... e até aquilo que te pediram para me dizer...
- Senhora!
- Não tenhas medo, Cadija. Eu sou tua amiga. Confio em ti.
E o sorriso da Princesa tranquilizou a velha aia. Mas depois, a voz de Fátima desceu ao tom das confidências:
- Cadija... Eu sei que meu primo Abu me quer para esposa... Mas eu, Cadija, eu...
Suspenderam-se a voz e o olhar. A velha aia compreendeu. Estava habituada aos mistérios do coração. E sorrindo também, mas discretamente, limitou-se a perguntar:
- Voltastes a ver, Senhora... o tal guerreiro cristão?
Ela fez que sim com a cabeça. Os olhos fecharam-se, num arrepio. Talvez de receio. Talvez de amor. Ou talvez de dúvida...
Silenciaram-se durante instantes. Lá de fora, do ar livre e puro, vinha o chilrear das avezinhas. E vinham também o calor do Sol e o cheiro do campo...
Depois, Fátima, a jovem e bela princesa moura, ainda mais bela do que jovem, respirou fundo.
- Ouve, Cadija... Ele tornou a passar ontem à tarde, além, naquele caminho... Vês?... Parou por momentos, tal como já acontecera... Lembras-te?
- E tendes a certeza de que era o mesmo, Princesa?
- Absoluta! Certeza absoluta, Cadija!
De novo, respirou fundo. E de novo desceu a voz quase a um murmúrio, como e falasse consigo própria:
- O coração não nos engana!
Foi a vez da velha aia se amedrontar. Agarrou as mãos da sua princesa e fechou-as nas suas. Singular contraste da vida! Mãos velhas e enrugadas a tentar defender mãos bonitas e viçosas.
- Minha querida Princesa... se vosso pai vem a descobrir...
- Cala-te, Cadija!
- Esse é o cristão que ele mais odeia, Senhora! - e, num suspiro inquieto e indeciso - O cristão que todos nós mais devemos odiar, Princesa!
Contam a lenda velhinha e a própria história de Portugal, que ele se chamava Gonçalo Hermingues e era conhecido entre os companheiros pelo nome de "Traga Mouros".
Forte e destemido, habituado a fazer de cada impulso uma vontade, o moço guerreiro era tido e havido como um dos melhores do seu tempo.
Porém, embora cruel e sanguinário na luta, não perdoando os que não lhe perdoavam, Gonçalo Hermingues possuía também uma alma de poeta.
Gostava de cavalgar pelos campos, improvisando os seus versões e as suas canções. E foi numa dessas cavalgadas que ele descobriu um vulto de encanto em certa torre daquela terra ainda em poder dos mouros, mas que ficava bem ao alcance dos seus olhos e dos seus desejos de conquista.
Gonçalo Hermingues voltou ao mesmo local, mais do que uma vez. E fosse por acaso, fosse de propósito - ela lá estava sempre, como visão maravilhosa que ia enchendo, aos poucos, o pensamento do guerreiro-poeta.
Em breve, ele sabia tudo o que lhe interessava a respeito dela. Chamava-se Fátima, era jovem e bela, mais bela do que jovem, filha única do emir, que a queria casar com o rico e poderoso primo Abu, e vivia recolhida naquela torre, donde raras vezes saía, na companhia das aias.
Mas Gonçalo Hermingues soube também que uma dessas saídas devia estar para breve. Seria na noite da Festa das Luzes, que correspondia precisamente à noite de S. João, em pleno mês de Junho...
Então, Gonçalo Hermingues começou a forjar o seu plano. Um plano filho da imaginação e do destemor. E com os seus companheiros habituais, tão arrojados como ele, esperou ansiosamente, pela noite de S. João.
Em silêncio saíram para o campo e em silêncio se dispersaram, tomando posições combinadas. Apenas a Lua, grande e redonda como balão festivo, era testemunha da cilada que se preparava. Uma cilada igual a tantas outras que naquele tempo se faziam - mas com uma diferença fundamental: era uma cilada de amor.
Tal como mandava a tradição entre a moirama, alta madrugada formou-se o cortejo que todos os anos ia em procissão de luzes até às margens do rio, como prelúdio da festa que se prolongaria pelo dia fora; às vezes pela noite dentro...
Fátima, a jovem e bela princesa moura, lá seguia também, acompanhada fielmente pela boa Cadija.
À luz dos archotes, de albornozes ao vento, montando ligeiros corcéis escolhidos entre os melhores e primorosamente ajaezados - os cavaleiros e as damas da moirama constituíam um magnífico e raro espectáculo.
Assim saíram pelas portas largas do alcácer e assim se lançaram em luzida cavalgada, a trote largo, acordando ecos no solo adormecido. Ecos que se misturavam com as suas próprias risadas...
Fátima era conduzida por seu pai: mas sentia ao lado o olhar atento de seu primo Abu.
Porém, nesse romper de madrugada ela não pensava nos problemas de coração. Dava-se inteira ao prazer da liberdade que tão raramente usufruía. Queria aspirar todo o ar puro, olhar duma só vez tudo quanto seus olhos podia alcançar, cantar todas as cantigas que sabia...
De súbito, como se a própria noite inundasse a manhã, transformando abruptamente a claridade em trevas - surgiu o mais terrível e odiado de todos os gritos:
- "Por Santiago, aos Mouros!"
E logo, da sombra das árvores quietas, do escuro da folhagem, saíram, correndo e gritando, em doido tropel de cavalos,vultos e mais vultos de guerreiros cristãos caíram sobre o aparatoso cortejo, destroçando-o.
Num instante, as canções de prazer mudaram em uivos de combate; a alegria em pânico; a ordem em confusão.
Fátima enchia de pavor os lindos olhos negros. Abandonada por seu pai, que correra a tomar o comando da defesa, não vendo mais a fiel Cadija, que desaparecera como por encanto, mal podendo raciocinar sobre o que acontecia - a Princesa sentia-se tremer.
Foi nesse mesmo momento que os olhos de Gonçalo Hermingues a descobriram. De um salto estava junto dela. Levantou-a e colocou-a no seu cavalo. E sorriu de triunfo. Ali estava o prémio da vitória.
Gonçalo Hermingues ergueu o braço e deu ordem de retirada aos companheiros, dando o grito de vitória já alcançada:
- Por Santiago e Rei Afonso!
Já na retirada, levando consigo a jovem e bela Fátima, além de outros prisioneiros, foram surpreendidos pelo ataque dos sarracenos. À frente de todos vinha Abu que tentou logo arrebatar a princesa a Gonçalo e conseguiu. Este não hesitou, caiu sobre o outro, com toda a violência.
A luta foi curta mas fatal para Abu. Quando Gonçalo Hermingues ergueu no ar a figurinha desmaiada de Fátima, os companheiros entenderam e terminaram a luta.
Diz-se que D. Afonso Henriques felicitou Gonçalo e perguntou-lhe o que queria como lembrança desta vitória.
- Licença para casar com a princesa Fátima!
E diz-se que el-rei de Portugal sorriu e disse:
- Pois seja assim, com a condição que ela se converta à santa Fé de Cristo e consinta ser vossa esposa.
Enquanto se tratavam dos esponsais a princesa foi viver para uma zona que diz a lenda, se passou a chamar Terra de Fátima e, mais tarde, só Fátima, nome que ainda hoje mantém.
Quando casada e baptizada a princesa moura recebeu o nome de Oureana. Como prenda de núpcias, D. Afonso Henriques ofereceu-lhes a vila de Abdegas que em homenagem à princesa passou a chamar-se vila de Oureana e por corruptela popular acabou por se transformar na Vila de Ourém.
Para terminar os versos que Gonçalo Hermingues dedicou a Oureana:
Ora vos tinha, ora não,
Mas a outros vos tomava.
Éreis minha, já não éreis,
Que em lutas todos andavam,
Em mil sortes pelejando.
Ai de mim, te vejo eu...
Aguentem-se companheiros,
Eu por mim tenho o que é meu.
Oriana, ai tem por certo
Que a vida que hei-de viver
Tudo esqueceu por teu bem
E mais ninguém há-de ver!