30 de outubro de 2008

Lenda da Brasília

Lendas de Portugal de Gentil Marques
Quando hoje em dia se fala em Brasília, todos pensam imediatamente na nova e esplendorosa capital do Brasil, autêntico milagre de iniciativa e de esforço.
Mas a história que vou narrar não diz respeito à Brasília monumental dos tempos actuais e sim a uma pequena terra do norte de Portugal, que também se chama Brasília. E o mais curioso de tudo é que esta Brasília portuguesa é já muito velhinha... Fica lá em cima, no concelho de Vila Verde, na freguesia de Escariz (S. Martinho), distrito de Braga, em pleno coração do Minho...
Pois foi devido a uma circunstância fortuita que encontrei os vestígios da história desta Brasília bem portuguesa, a qual vou evocar aqui, precisamente, como saudação fraterna à Brasília de 1960.
Tudo começou há muitos e muitos anos já, talvez numa manhã fria e ventosa, quando os lobos uivavam na serra e o céu se tingia de ameaças de tormenta.
Nessa manhã invernal, subindo a encosta batida pelo vento, destacavam-se dois vultos lutando contra a Natureza. Um homem e uma mulher. Ambos procuravam alcançar a casa onde viviam, ali, nos arredores então quase desertos de Vila Verde.
A tormenta mal deixava que falassem. Mas falavam, apesar de tudo...
- Estamos já próximo... Mais um esforço, mulher!
Ele procurou ampará-la dando-lhe alento para o resto da jornada. Porém, ela parecia demasiadamente débil para aguentar essa arrancada final.
- Tenho medo de não poder ir mais longe... Sinto-me sucumbir...
O braço forte do homem enlaçou-a.
- Vamos, eu ajudo-te... Uma pequena corrida e estaremos em casa...
Mais num sopro de alma do que pelas próprias palavras, ela assentiu:
- Está bem, homem... seja o que Deus quiser!
E Deus quis, segundo conta a lenda. Conseguiram alcançar a casa, vencendo o vento violento e cortante.
Quando a porta bateu atrás deles, deixando o vento lá fora, a mulher caiu extenuada sobre um banco de madeira.
Arquejando, no saldo do esforço feito, o homem olhou-a e mordeu os lábios grossos. Por remorso ou por piedade. Só ele o sabia.
Depois, atirou-se também para cima de um banco tosco.
- Uff! Até que enfim... Cheguei a pensar que desta vez não chegaríamos...
Houve uma pausa. Pausa cortada apenas pelo ranger da madeira e das telhas, ao sabor da ventania louca que continuava cavalgando pela serra.
Quase chorosa, a voz trémula da mulher fez-se ouvir então:
- Que direi eu?
Parou. Respirou fundo. E repetiu, como que um eco, para si própria:
- Que direi eu?
Os seus olhos, ainda doridos, voltaram-se para o marido.
- Foi para isto que me trouxeste lá da minha terra distante?
Ele encostou-se molemente à mesa de pinho. E a sua voz soou também com um certo acento de moleza:
- Que queres, mulher? Nem tudo pode sair à medida dos nossos desejos...
Encolheu os ombros, a sacudir as suas culpas.
- Eu bem te disse, quando casámos: hei-de voltar a Portugal, à minha terra e lá teremos o nosso lar...
Mas a mulher, de súbito, encontrou forças para ironizar:
- Bonito lar, não há dúvida... Um casebre... Um bocado de terra que não dá nada... e este tempo horrível, pavoroso... Um inferno!
Agora, a ironia já sabia a lágrimas. O homem tentou contemporizar:
- Ora, Deus há-de ouvir as nossas preces. Depois da tempestade virá a bonança, acredita!
Ela abanou a cabeça. Tristemente. Desesperadamente.
- Quando estivermos mortos, não é verdade?... Ou, pelo menos, quando já não pudermos lutar...
De novo o silêncio. Depois, o vento e os lobos lá fora. Uivando.
O homem ergueu-se. Andou uns passos para a companheira. Hesitante.
- Tem fé, mulher, tem fé como eu!... Nunca te enganei... Quando tive a sorte de te encontrar lá no Brasil, não te prometi nada que não te tivesse dado.
Foi a vez dela o olhar bem de frente. E ergueu-se, também, como uma sombra.
- Achas que me tens dado tudo o que me prometeste?...
teve uma risada curta e sarcástica.
- Onde está a terra fértil?... Onde está a nossa linda quinta, no Minho?... Onde está a nossa fortuna?...
Calaram-se os dois.
Aquelas palavras da mulher ficaram a doer na alma do marido. No resto do dia. Toda a noite. E nos dias seguintes.
Por fim, resolveu-se. Foi procurar o velho e bondoso padre da freguesia.
- Senhor Prior, quero que seja o senhor o primeiro a saber: eu vou voltar ao Brasil.
Os olhinhos piscos do padre abriram-se em parêntesis de espanto.
- Que dizes, homem? Que ideia é essa?
O homem torceu as abas do chapéu nas mãos rudes e nervosas.
- A minha mulher tem razão, senhor Prior... Há uma coisa, pelo menos, que lhe prometi e ainda não lhe dei: a fortuna... E essa... essa só a poderei encontrar no Brasil!
- Mas vais aventurar-te outra vez em tal viagem?
O homem respirou forte. Forte e fundo. Como se tivesse menos dez anos:
- E isso que tem, senhor Prior? Aproveito o próximo embarque... Conheço aquilo como as minhas mãos... Voltarei rico em pouco tempo.
Arreganhou os dentes num sorriso. Sorriso de desafio e de confiança.
- Rico, senhor Prior!
O velho padre compreendeu que de nada valia tentar dissuadi-lo. Limitou-se a dizer:
- Faz o que achares melhor... e que Deus te proteja!
Depois, traduziu em pergunta uma ruga de preocupação que se lhe vincara na testa:
- Ouve lá... E com respeito à tua mulher?...
A resposta veio pronta como que estudada e decorada há muito tempo:
- Ela ficará aqui, senhor prior, à sua guarda.
A ruga de preocupação multiplicou-se em muitas outras rugas.
- À minha guarda?
O homem buscou uma explicação ao plano que forjara em noites de insónia:
- Sim! É como quem diz: à guarda de Deus!... O senhor Prior a livrará de maus olhados... e de más companhias. Que esta gente, quando a sentir sozinha não a deixará sossegada. Mas posso confiar em si, senhor Prior, não é verdade?
O velho padre gostou desse tom de franqueza. Sorriu docemente.
- Podes sim, meu filho!
O homem levantou-se de olhar iluminado. Era o princípio da sua vitória. E tinha aleluias na voz quando voltou a falar:
- Dê-me a sua bênção, senhor Prior... Até à volta, e que Deus me proteja!
Tal como dissera, o homem seguiu de novo o caminho da aventura... Nesses tempos já longínquos chamavam-se "brasílios" ou "brasileiros" àqueles que iam tentar a sorte no Brasil e regressavam depois, às suas terras. O nosso homem era um desses "brasílios".
E, por isso mesmo, a sua abalada deixou toda a gente das redondezas a falar no caso, tecendo os mais variados comentários pois não era habitual voltar à grande aventura, pela segunda vez...
Entretanto o tempo foi passando, correndo, fugindo. E, tal como nos conta a velha história quase desfeita pelos séculos, não voltou a haver notícias do homem que voltara ao Brasil. Mais cansada, mais triste, mais desiludida, a mulher queixava-se amargamente:
- Senhor Prior, que posso eu fazer aqui, sozinha... se meu marido me abandonou?
Que podia ele responder , senão o que lhe ditava a própria consciência?...
- Não te abandonou, minha filha... Foi apenas tentar conquistar a fortuna que te prometera.
- Para quê? Sim, para quê?... A fortuna estava aqui ao nosso alcance... Ele tinha razão... Esta era a terra que Deus guardava para nós... Mas agora... agora... que posso eu fazer, senhor Prior?
De mãos unidas, como em oração, a pobre mulher erguia-se diante do velho padre. O sacerdote percebeu que a hora era decisiva. Ou ela se salvava ou ela se perdia. E deliberou atacar o problema de frente...
- Tens de tratar da terra como se ele estivesse a teu lado!... Tens de criar a quinta com que ele sempre sonhou!... Sabes lá, minha filha, se o teu marido não voltará um dia?
palavras oportunas e justas. Cada uma delas acertou no alvo. E o alvo era o coração.
- Está bem, senhor Prior! Assim farei!
A partir de então a mulher atirou-se valentemente ao trabalho. Das fraquezas fazendo forças. Transformando fragilidade em ousadia, ganhando entusiasmos com o próprio esforço.
Naquele lugar quase deserto e abandonado, começou a surgir uma quinta maravilhosa, como que abençoada por Deus!
Porém, a mulher tudo fizera por uma inspiração febril. E quando a febre se esgotou diante da obra consumada, ela ficou mais gasta e mais triste, e mais soturna do que sempre.
Lentamente, voltou ao encontro do velho padre.
- Senhor Prior, creio que cumpri o meu dever...
O sacerdote (também mais gasto, e mais triste, e mais soturno) elevou os olhos ao céu.
- Deus te abençoará minha filha!
Mas ela não procurou delongas. Foi direita ao fim:
- Creio que não poderei durar muito mais tempo, senhor Prior... Sinto-me esvaída... Acredite!... talvez me falte o calor do amor...
Respirou fundo a recobrar alentos, e prosseguiu:
- Sim... Que vale uma espera destas, sem marido?
Parou, travada por um pensamento qualquer. E sorriu suavemente. E confidenciou, num murmúrio:
- Quer saber uma coisa, senhor Prior?... Uma destas noites, sonhei com o meu marido... Vi-o tal e qual como no dia em que ele abalou... Mas já não estava na Terra... Tinha subido ao Céu...
Olhou o padre. Ele nada disse. Então a mulher elevou a voz:
- Eu também me sinto morrer, senhor Prior! E peço a Deus que me junte de novo ao meu marido!
Passou entre ambos um pequeno silêncio. Silêncio feito de saudade e de evocação. E o velho padre disse, pausadamente:
- Decerto que sim, minha filha... A tua vida exemplar, toda devotada ao respeito e ao sacrifício, bem o merece!
Por instantes a mulher ficou inebriada pela bênção. Mas, de seguida, um outro pensamento lhe afluiu ao cérebro:
- E esta quinta, senhor Prior? Este lugar? para que servirá tudo isto, depois de eu morrer?
O sacerdote velhinho cruzou as mãos sobre o crucifixo. Cerrou os olhos e respondeu com toda a força do seu íntimo:
- Servirá para mostrar a tua história e o teu exemplo!
De facto, segundo se conta e eu reconto, depois do sonho que tanto a impressionou, a mulher não durou muito mais tempo, como ela própria supusera. E dizem que morreu sorrindo. Sorrindo e de olhos em êxtase, murmurando:
- Lá está ele... Ele, o meu marido... Vou para junto dele... Para junto do meu brasílio... pois eu sou a sua brasília!
E toda a população dos arredores foi ao último adeus. Nesse dia, a quinta parecia ainda mais bela e maior.
Embora muito velho e vacilante, o senhor Prior não quis faltar. De mistura com as flores que depunham na campa da mulher, ele deixou cair também uma rosa desfolhada pelos dedos trémulos. E disse, com o que lhe restava da eloquência habitual:
- Sim, meus filhos! Vocês que tanto falaram do brasílio, quando ele voltou à aventura, só têm agora que falar bem da mulher do brasílio. Peço-lhes, meus filhos, que este novo lugar, em homenagem ao esforço de quem o criou, fique a chamar-se, para sempre, tal como vocês já lhe chama  - o lugar da Brasília!
Na verdade, lá está desde há séculos, na freguesia de Escariz (S. Martinho), no concelho de Vila Verde, do distrito de Braga, em pleno coração do Minho, o Lugar da Brasília ou apenas Brasília, como se designa hoje em dia.
E quem sabe se foi daí que nasceu precisamente a ideia do anónimo deputado paulista anterior ao projecto de José Bonifácio de Andrada e Silva que realmente se transformou em realidade esplendorosa no ano de 1960?...
Quem sabe?

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