1 de novembro de 2007

Ana II


A hora de nascer foi complicada. Posso-me gabar do dia em que nasci pois se tinha que, nesse momento, haver força e vontade, fui eu que a fiz e que a tive. A minha mãe ou não as tinha ou não as queria ter mas eu, eu queria nascer. E no dia 28 de Abril de 1951 travei a primeira luta que me fez chorar, chorei pela primeira vez, mas de vitória.
Comigo chorou meu pai, encantado pela sua menina, que era sua e da mulher que amava.

A menina teve uma infância de cidade, vulgar, sem história, sempre cumpriu com aquilo que lhe era pedido.
Foi sempre criada pela avó, pois os pais continuavam a sua vida de trabalho, só os via à noite e aos fins de semana. E esta avó soube sê-lo, não só avó, como criança amiga, como mãe.
Fui feliz na minha infância, era o centro das atenções, filha única, neta única, sobrinha única. Um tesouro.
O liceu começou, o estilo de vida mudou, os horários eram diferentes, os interesses também, assim como as companhias e a menina mulher despertou. Vi o espelho. Entrei em comparação com as colegas com quem lidava. Onde estava a beleza da juventude? Onde estava a elegância da mocidade? Nunca houve, nunca existiu. Não era bonita, nem elegante.
Comecei a reparar nas conversas que me rodeavam:
- Já não sei o que hei-de vestir a esta rapariga. Tudo o que usa lhe fica mal. Assim que veste as coisas ficam todas sem graça.
Então era verdade. Eu era um aborto! Tornei-me reservada. Só me sentia bem entre aqueles que me acarinhavam. Tão poucos! Amigos, nunca tive. Porquê? Não sei. Senti-me, pela primeira vez, muito só.

A vida foi passando, até que um dia, quando eu tinha 14 anos, surgiu um acontecimento na família: um primo casava. Eu ia assistir a um casamento.
A escolha das fatiotas já foi uma luta, como é de calcular. Calcei os meus primeiros sapatos de salto e as primeiras meias de seda. Vi o espelho, pela segunda vez e aí fui eu que não gostei.
O casamento fez-se. Dizia a família que o casamento era desigual, os meios sociais dos noivos eram diferentes.
Nesse dia aconteceu uma coisa que mudou a minha vida: conheci um rapaz que era convidado da noiva e, de todos os convidados, fomos os únicos que nos juntámos. Nunca tinha falado tanto, nunca tinha ouvido tanto, nunca tinha sentido tanto.
O tempo passou, o dia acabou e a festa também mas, a vida continuou.
Um dia, ia a sair do liceu e o rapaz lindo estava à minha espera. Para quê? Porquê? Era desenhador na ponte e como eu lhe tinha dito que adorava a Natureza ela vinha-me oferecer umas estalactites que tinha encontrado numas grutas quando andavam a fazer as fundações para a construção.
Acompanhou-me até casa. Todo o caminho conversámos de coisas banais, dando a conhecer toda a nossa ingenuidade. A conversa foi agradável, houve vontade de repetir, surgiu o prazer de estar, ao fim de algum tempo, surgiu a necessidade de manter e aí começou o namoro. Os anos passaram, a tropa acabou e sentimos necessidade de ficar e o casamento fez-se.
Foi agradável sentir-me importante, foi bom sentir-me querida. Era feliz por saber que conseguia excitar alguém. Só eu sabia, só nós conhecíamos essa parte da nossa vida e, ao fim de três anos de casamento, a prova para o mundo surgiu: Eu ia ter um filho, eu conseguia criar vida, não sozinha, claro, mas com o homem mais lindo que eu tinha conhecido em toda a minha vida e que tinha casado comigo, não sei como nem porquê, mas ele dizia que sabia.
Foi a época mais feliz da minha vida. Trazia um filho comigo, já havia muita ternura para ele, já conversávamos os dois, por pequenos gestos, por pequenas emoções, por grandes pensamentos.
Amanheceu o dia em que nasceu. Que alegria! Que beleza! Eu ia mostrar ao mundo aquilo que mais adorava na vida.
Foi dos momentos mais lindos de toda a minha vida.
Nasceu um rapaz são, e belo como o pai. Tanta ternura, tanta alegria, tanta felicidade! Era mãe!
A nossa vida a três começou e foi óptimo. O companheirismo continuou, a amizade também mas, surgiu a cumplicidade (pensava eu) para a criação do nosso filho.
Cresceu saudável, continuou lindo mas, a cumplicidade que pensava existir entre mim e o pai surgiu entre pai e filho. As coisas apareciam ao mais leve pedido, não se compravam coisas, gastava-se dinheiro para satisfazer o mais pequeno desejo de seu filho. E eu, senti-me só, pela segunda vez na minha vida.
Lutei contra a sensação para que ela não passasse a certeza. Quis abafar a suspeita mas o tempo não parava, o tempo não perdoava. E um dia, quando o nosso filho, tradicionalmente, precisava mais do pai, mais precisamente, no ano em que o nosso filho fez 12 anos, o pai morreu, e eu senti-me só pela terceira vez na minha vida.

4 comentários:

fernada disse...

Já há dias tinha ido ao teu blogger,mas depois não sabia como enviar o meu modesto parecer.Para mim não foi novidade,porqu quando falava contigo...aPaula de poucas palavras de um olhar que queria ver mais ,para além da alma e ir sempre ao âmago das coisas não me surpreendeu.A tua torre de "marfim" é doce,ternurenta,é mais dar que receber.Gostei.Quero ler mais coisas bonitas cheias do teu jeito,do teu filling e da tua análise crítica.Adorei rever o teu André e conhecer a tua neta.

20visitar disse...

Minha boa amiga, obrigada pelos teus elogios, comoveram-me. Para confirmar aquilo que te tenho dito, esta fotografia sou eu, o meu marido e o André no dia em que ele fez 1 ano. Vês como são parecidos? Beijos

Unknown disse...

.. pois é menina. Esta magia, esta "coisa" do sentimento que navega pelas palavras, é um dom que embora esteja ao alcance de todos, nem todos o sabemos cultivar. Obrigado pela partilha. Gostei de "navegar". ABraço

xarapolanco disse...

Cara amiga, li o resumo da sua história e se me permite um breve comentário. Fala de três solidões.
Da primeira, como eu a entendo! Não pelas mesmas razões, por outras, que fizeram de mim uma menina triste.
Mas uma coisa lhe garanto com muita honestidade, quando pela primeira vez que a conheci, achei-a uma senhora simpática, com um sorriso lindo e cheia de charme.
A segunda solidão,há milhares de solidões por aí, no campo da maternidade,todas diferentes, mas da mesma forma profundamente.
Eu também me senti uma mãe só, embora acompanhada, por dois filhos e uma criança crescida que entendeu mal a essência do casamento,confundindo o que deveria ser companheirismo,por uma plantaforma para uma liberdade que os pais sempre lhe negaram.
Quanto á terceira, a mais triste de todas, que infelizmente acompanhei, deixe-me que lhe diga, esse seu grande menino de doze anos,foi mesmo um menino grande,dobrou com grande coragem essa página da sua vida,e enfrentou o futuro com determinação, só o poderia ter feito ao lado de uma mãe como a Paula.
Beijinhos para vocês.