1 de novembro de 2007

João


Algures, num monte alentejano, num dia chuvoso de Novembro, nasceu um mocetão belo e forte, no meio de uma família convencional.
A chegada desta criança era muito desejada. Os pais, moços novos e ainda apaixonados, viram naquele rapaz a bênção do seu casamento. Era um casal de uma simplicidade extrema e talvez por isso e por outras qualida­des que o parzinho apresentava, foi um casamento visto com muito cari­nho, por toda a gente.
Com a chegada do João (foi assim que os pais resolveram chamar-lhe) toda a gente que já via aquele casal com um certo carinho viu esse carinho ser aumentado com aquele nascimento.
Tanta ternura, tanto carinho, tanta devoção, tanto medo de errar em qualquer coisa que pudesse vir a prejudicar a saúde do seu rebento. Mas não, tudo correu bem e, com o andar dos anos, foi surgindo, rodeado do carinho da família e de mais alguns irmãos, um rapazote traquinas, muito curioso, muito perguntador, querendo saber e perceber tudo o que o rodeava.
Chegou o tempo de ir para a escola e o nosso amigo João, pela mão da mãe, lá foi conhecer a D. Maria do Rosário, sua professora.
Lá no fundo, no fundo daquele coração pequenino, estava um medo curi­oso para conhecer o que lhe iria surgir pela frente e, com muita estra­nheza da mãe, o seu João lá ia, por aquele caminho, muito calado, an­dando sem pressa, o que não era nada seu hábito mas, ao mesmo tempo, no­tava-se a ansiedade por chegar.
Pelo caminho, foi encontrando crianças da terra com quem costumava brincar. Uns sozinhos, mais crescidos, de passada segura e olhar feliz, ou­tros, mais pequenitos, acompanhados por al­guém da família mas, só o facto de ver esta gente que já era sua conhecida foi tendo o dom de o acalmar.
Entrou na sua sala. Viu já sentados alguns amigos seus o que fez com que se sentisse mais seguro mas depois, encarou com uma senhora, mais ou menos da idade de sua mãe, com um sor­riso aberto e franco e olhar doce que, ao vê-lo entrar, lhe fez uma festa na cabeça e lhe disse com uma voz suave e carinhosa:
- Bom dia, João. Então, gostas da casa onde vais ouvir e contar coisas muito bonitas? Ela, por enquanto, ainda tem umas paredes muito vazias mas, quando tu e os teus companheiros come­çarem a trabalhar, tu vais ver como a sala vai ficar alegre e muito mais bonita, com estas paredes todas cobertas de lindos desenhos de muitas cores que os vossos lápis e canetas tra­zem guardados lá dentro e que nós, a pouco e pouco, vamos deixando sair cá para fora.
O João sorriu mas não disse nada. Sentou-se junto de um companheiro que já conhecia. Alguns meninos, na sala, estavam a chorar e a profes­sora tinha pedido às mães para se deixarem ficar junto deles, mais um pouco. A mãe do João ficou a falar com a professora. O João percebeu que estavam a falar dele, só não percebeu o quê.
Aquele ano foi passado e a ida para a escola tornou-se rotina. Os meninos que, a princípio, cho­ravam, deixaram de chorar pois além de já terem feito mais amizades, já viam na professora uma pessoa amiga, sempre pronta a ajudá-los, que contava histórias maravilhosas e ao pé de quem se sentiam muito confortáveis.
O primeiro a fazer anos naquela sala foi o João. A mãe, sem ele saber, tinha levado para a es­cola um bolo de anos para, à hora do intervalo, com os companheiros e a professora, cantarem os parabéns a você. Que ale­gria quando se apercebeu da surpresa que lhe tinham preparado.
O tempo foi passando, o João foi crescendo e, por ser inteligente e es­perto também era muito irrequieto e curioso, sempre a perguntar, sempre a querer saber mais um pormenor que não tinha entendido. A professora, às vezes, enervava-se porque queria despachar a matéria que era obri­gada a dar mas, ao mesmo tempo, também pensava que era uma pena não satisfazer toda aquela curiosidade que, bem medidas as coisas, acabava por trazer as suas vantagens pois ele ficava satisfeito e mais sos­segado e os outros acabavam por ouvir falar de certos assuntos que ela, se calhar, de outra maneira, nem de tal coisa se lembraria.
O João lá acabou a escola e o rapazito que ele era quando para lá entrou, transformou-se num belo moço que se preparava para ir para o liceu que ficasse mais perto. A partir daí começou o desassossego em casa daque­les pais. O telefone não parava com gente a perguntar por ele. Ele não pa­rava porque tinha sempre o grupo com quem se juntava, quer para es­tudar, quer para se divertir. A mãe ficava muito preocupada e dizia ao pai que não sabia como é que ele tinha tempo para estudar, nem ocasião pois nunca o via pegar num livro. O pai, homem muito calado mas muito ob­servador, só perguntava: - Mas os resultados não têm sido bons? O rapaz não tem pas­sado sempre? Não tem trazido boas notas? Então não te pre­ocupes...
E era verdade, os anos de liceu estavam a ser ultrapassados sem dificul­dades. Até que um dia, já com os seus dezasseis anos, reparou com mais atenção numa moça que seguia o mesmo cami­nho que ele mas, para o liceu de raparigas que também ficava ali perto. Começou a fixar os dias em que a via pois isso queria dizer que o horário coincidia e, num desses dias, encheu-se de cora­gem e resolveu começar a falar com ela. A conversa, ao princípio era muito banal mas, a pouco e pouco o à vontade foi aumentando e começou a nascer uma simpatia que o João não sabia explicar.
Ansiava os dias em que se podiam encontrar e, nesses dias, ansiava a hora a que estavam jun­tos. Adorava ouvi-la conversar, adorava as suas gargalhadas e aquela carinha trigueira então, quando sorria, nem é bom falar. O João não entendia o que se estava a passar com ele, até que um dia, fez-se luz. Estava apaixonado.
Desde pequeno que o João sempre disse que queria ser médico. O fim do liceu aproximava-se e a vontade de ser médico não tinha desaparecido, aquilo com que ele não tinha contado era com a paixão e com a ideia de ter que vir para Lisboa e deixar a sua namorada na terra.
Os primeiros tempos na cidade foram difíceis, embora estivesse em casa de pessoas de família que o tinham recebido de braços abertos, era com muita ansiedade que aguardava o seu fim de semana para ir à sua terra matar saudades da namorada. Durante a semana, a princípio, era uma carta todos os dias e havia sempre coisas para dizer. Depois, o curso foi-se complicando, as épo­cas de exames foram-se aproximando e houve ne­cessidade de alguns fins de semana, em vésperas de exames, ficar em Lisboa.
As cartas que esperava com ansiedade começaram a espaçar-se e, numas férias, já nos últimos anos de curso, para grande espanto seu, a sua na­morada, em quem tinha investido tanta fé e carinho, comunicou-lhe que era muito sua amiga mas que, para casar preferia um rapaz lá da terra por quem se tinha apaixonado, durante as longas ausências do João. Ele não soube explicar o que sentiu porque nem ele próprio o entendeu. Só sabia que era uma dor muito funda misturada com uma revolta muito grande. E, nesse último ano de medicina, as férias foram mais curtas porque o João quis voltar mais cedo para Lisboa.
Não queria ficar ali tão perto dela, não conseguia arrumar seus pensa­mentos e o João, alegre e bom companheiro voltou para a cidade com um ar triste e muita sede de vingança.
Vingar-se em quê e em quem? Não havia nada a fazer, a decisão estava tomada e sem o acordo dos dois era impossível, então, vingou-se nele próprio. Durante o dia, as aulas e, durante a noite, juntava-se com meia dúzia de amigos e "era até dar". A cabeça precisava de estar cansada, pelo menos ocupada.
O tempo passou, o curso acabou e o João cansou-se de toda aquela vida nocturna e vazia. A situação que tinha vivido e que tinha tocado fundo na sua vida sentimental tornou-o frio e des­confiado.. Até que um dia, nos anos de um amigo, conheceu uma moça bonita e de conversa muito agra­dável que enterneceu aquele coração que ele pensava que já não voltaria a bater com tanta força.
A moça era simpática, agradável, meiga e começaram a encontrar-se. Ha­via sempre pontos inte­ressantes de conversa. Começaram a descobrir-se muitos pontos comuns e começou-se a sentir necessidade de estarem mais tempo juntos.
O João enterneceu-se com tanta doçura e resolveu casar-se. A vida era feliz, o João alegre e brincalhão voltou, satisfeito com a mulher que tinha ao lado.
Um dia, quando chegou a casa, depois de um dia trabalhoso e cheio de ca­lor, tinha uma surpresa à sua espera. Aquela mulher de quem ele tanto gostava deu-lhe a notícia que estava confirmado vir um bebé a caminho.
Um herdeiro, que orgulho, que alegria! Ele, que era obstetra chegou, na­quele momento à conclusão que não sabia o que havia de fazer. Nada da­quilo que sabia. Porquê? Já tinha assistido ao nasci­mento de tanto bebé porque é que estava tão baralhado agora que era mais necessário estar lúcido? Aquele filho era seu. Não conseguia separar sentimento e emoção de racionalidade e agora, a emoção era tanta e a alegria também que não conseguia pensar o que fazer. Pediu a ajuda de um colega da sua confi­ança e chegou o dia em que o seu bebé nasceu. Um rapaz lindo e robusto, saudável e que fez com que, da sua cabeça saíssem mil e uma preocupa­ções.
A roda da vida voltava a rodar, mas rodava sempre sem sair do mesmo sítio. O ciclo repete-se, uns nascem, outros morrem, mas agora, na his­tória do João tinha acontecido a parte mais ale­gre. Tinha acontecido um nascimento e de um filho seu.
Estava muito feliz.

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