20 de outubro de 2008

Lenda dos Estremoços

Lendas de Portugal de Gentil Marques
O sol, um sol quente, abrasador, caía implacável sobre o carro onde viajavam um homem, uma mulher e uma criança. Este grupo vinha de longe, dos contrafortes da serra. Ódios políticos tinham atirado esta família para a estrada sem fim. O calor apertava. A sede torturava-os. O pó punha-lhes a boca gretada e a língua áspera. Precisavam descansar, fugir ao sol desta planície imensa que ficava para além do rio Tejo.
De súbito apareceu uma sombra larga, acolhedora, como um oásis no deserto. O homem refreou o andamento dos cavalos que puxavam a carruagem. Gritou contente para a mulher:
- Olha que árvore! Que bela! Que majestosa!
A mulher concordou:
- É das mais belas que tenho visto!
Curiosa, a pequenita filha do casal perguntou logo:
- Mãezinha, como se chama esta árvore?
Foi o pai quem respondeu:
- Creio que é um tremoceiro!. Não tem, aparentemente, grande importância... Mas a verdade é que oferece uma sombra bem acolhedora!
A criança olhou os pais. E arriscou:
- E se ficássemos aqui? Já estou tão cansada... e com tanto calor...
O homem sorriu:
- Tens razão minha filha! Vamos ficar por aqui... Pelo menos estaremos à nossa vontade, livres de inimigos e de más vizinhanças... Vamos! É necessário levantarmos a nossa tenda de campanha, antes que anoiteça.
A pequenita pulou imediatamente para o solo. Na sua imaginação aquela sombra era o Paraíso...
- Eu também quero ajudar! Vai ser tão bom... Não teremos que voltar a andar de carro por estes caminhos com tanto sol e tanta poeira!...
O homem desceu também, acariciou a cabeça da filha e olhou em redor. Lentamente. Atentamente.
- Isto é grande! Mas não vejo ninguém... Tanto melhor!
E, na manhã seguinte, quando o Sol veio dar os bons dias ao tremoceiro, encontrou erguida uma barraca de campanha, como que a proclamar a independência dos foragidos naquela terra de liberdade...
Porém, uma visita inesperada surgiu também, aos primeiros clarões do Sol. Era um velho forte e autoritário, arrimado a um grosso bordão. Havia cólera na sua voz ao interpelar os recém-chegados:
- Com que direito entrastes nos meus domínios?
O outro homem sentiu-se ofendido com aquele tom e indagou com altivez:
- E quem sois vós para me fazerdes semelhante pergunta?
O velho bateu com o bordão na terra:
- Sou o dono de tudo isto... de todo o plaino... Do tremoceiro, que plantei por minhas mãos... das árvores que há em redor...
- E nós somos viandantes... ou para melhor dizer: perseguidos injustamente por delitos que não cometemos...
O velho resmungou, num ar de suspeita:
- Talvez assassinos... ou ladrões...
Desta vez, com grande espanto do próprio velho, foi a criança que o interrompeu, numa vozita indignada:
- Senhor! Estais a insultar meus pais e eu não poderei admitir-vos...
O senhor daquela terra sorriu irónico, mas a sua voz perdeu o tom colérico:
- O quê? A formiga já tem catarro? Era o que faltava... uma fedelha a atravessar-se no meu caminho!
O viandante curvou-se:
- É uma criança que fala pela voz da verdade! Não tendes o direito de nos insultar!
Então, a cólera voltou a apossar-se do velho. A sua expressão tornou-se dura:
- Fora daqui! Ouvis bem? Fora daqui! Não vos quero ver mais nos meus domínios!... Saíreis a bem... ou à força!
Altivo, o homem que viera de longe retorquiu:
- Pois já que nos ameaçais... dir-vos-ei que só à força sairemos... se tiverdes poder para isso!
O grosso bordão do velho bateu com mais vigor ainda na terra.
- Já que assim o quereis... assim o tereis! Os meus homens não tardarão a expulsar-vos!
E, ditas estas palavras, ele voltou costas, meteu-se na velha carroça que o esperava - e abalou...
Mas, pouco tempo depois, voltou com muitos homens armados. A família que viera de longe e acampara ali para encontrar paz e descanso recolheu apressadamente à sua carruagem. A vida estava em perigo e era necessário, mais uma vez, defendê-la.
Com voz cansada e triste, a pobre mãe murmurou numa queixa:
- Meu Deus! Porque somos tão perseguidos? Não fizemos mal algum e todos nos odeiam! Porquê, meu Deus?... Porquê?
Mas já o marido lhe recomendava enérgico:
- Defende tu aí essa entrada... Eu ficarei aqui a aguentá-los! Não se dirá que um fidalgo como eu se rendeu pela força...
Um grito abafado veio cortar-lhe o pensamento. Ele olhou a mulher que mostrava uma expressão apavorada.
- A nossa filha?... A nossa filha onde está, que não a vejo?
Ele inquietou-se:
- Mas... vi-a há pouco, junto de ti!
- Sim... enquanto estávamos descansando... Mas agora... Agora não sei dela!...
O homem rangeu os dentes:
- Ah, miseráveis! Se derramaram uma gota de sangue que seja da minha filha, hão-de pagar-mo bem caro!
Entretanto, indiferente ao perigo, a criança tinha atravessado por entre os homens armados e avançara, devagar, como um pequeno gato, ao encontro do velho chefe. Quando este a viu perguntou, espantado:
- Tu? Aqui? Como ousaste?
A pequenina sorriu com candura:
- Com a ajuda de Deus, meu senhor... Preciso falar-vos!
- Falar comigo?
Havia desconfiança na voz do velho.
- Ah! Não será uma armadilha?
A rapariguinha abriu os olhos num espanto. Num espanto e num sorriso.
- Armadilha? Oh... Não! Não poderia fazer-vos mal... Sou tão pequena ainda...
O velho pareceu cair em si. Franziu as espessas sobrancelhas esbranquiçadas e a sua voz soou melhor aos ouvidos da menina:
- Perdoa-me! Tens razão! Portei-me agora com insensatez. Diz lá o que pretendes...
Ela mostrou-se alegre.
- Sabei, senhor... que estive a pensar numa coisa!...
- Tu... a pensar? E que foi?
- Ora... Pensei que em volta de uma árvore tão bonita como aquele tremoceiro podia construir-se uma povoação também bonita e grande... capaz de causar inveja às outras povoações...
Foi a vez do velho sorrir à criança.
- Não é mal pensado! Mas como havemos de a construir?
- Com boa amizade e paz.
O velho repetiu as mesmas palavras. Pensativo. Como num eco do seu próprio pensamento.
Então a pequenita prosseguiu com entusiasmo, vendo que a luta se mantinha suspensa, esperando ordem de ataque.
- Sabei que meu pai é um grande construtor. A minha mãe ajuda-o em tudo... Se o senhor quisesse... eles poderiam construir aqui uma cidade, dirigindo e aproveitando o trabalho dos seus homens..O velho olhava-a espantado. Meneava a cabeça como que duvidando do que ouvia.
- Ora esta! Uma catraia como tu... com uma ideia tão grande! Donde te veio semelhante pensamento?
Ela sorriu, ingénua.
- Foi Deus Nosso Senhor quem mo deu!
Houve um momento de silêncio, em que o olhar do velho ficou a perder-se no vasto horizonte. depois, tomado de súbita energia, gritou para os seus homens:
- basta! Pensei melhor e não atacaremos... Podem retirar-se. daqui em diante todos seremos bons amigos e companheiros!
E nesse mesmo dia, com grande júbilo do casal foragido - que voltara a ter junto de si a filhinha adorada mas ignorava ainda tudo quanto se havia passado - o velho chefe procurou o marido e a mulher. Porém, desta vez chegou sorrindo:
- Venho em missão de paz e amizade!
A mulher respondeu-lhe, já com voz serena:
- Sede bem-vindo, senhor!
Afável, também, o homem que viera de longe quis demonstrar o seu desejo de confraternização.
- Tomai um pouco de sombra do tremoceiro!
O velho acrescentou intencionalmente:
- Do "nosso" tremoceiro - quereis dizer!
- Como?
- De hoje em diante, o tremoceiro pertencerá a todos nós... Sei que sois um grande construtor e vós, senhora, extraordinária ajudante...
o homem interrompeu-o perplexo:
- O quê?... Decerto estais enganado, senhor! Fui, sou e serei unicamente um fidalgo... E esta é a minha esposa, à face de Deus e dos homens!
- Mas... a vossa filha disse-me...
Houve um leve sorriso nas expressões do casal.
- Compreendo agora, senhor! A nossa filha tem uma imaginação prodigiosa e vós... acreditastes...
O velho olhou a criança. Ela encolheu-se um pouco entre envergonhada e receosa...
- Uma fedelha destas a enganar um velho como eu! Mal posso acreditar...
Mas a sua voz tinha um tom bonacheirão. Cheirava a simpatia. E a pequena ladina pareceu ficar logo mais à vontade. Segurou carinhosamente nas mãos do velho e falou devagar, espiando as reacções dele:
- Oh, meu Senhor... eu não vos enganei... Reparai no que vos disse: Com o auxílio de todos poderemos construir uma grande povoação à volta do tremoceiro... Pois não é verdade?
O velho voltou a sorrir.
- Tens razão... O que é preciso é haver boa amizade e paz! 
E sublinhou, puxando-a para si com ternura:
- Hoje mesmo começaremos a construir a nossa terra!
Dentro em breve, o sonho da rapariguita começou a transformar-se em realidade. Com a ajuda de todos, trabalhando esforçadamente de sol a sol, a povoação ia criando as suas primeiras casas e a sua primeira rua.
Agora sim, graças à esperteza e à iniciativa da filhinha, o casal foragido sentiu que conquistara, de novo, a felicidade.
E a estimular ainda mais os infatigáveis obreiros da nova povoação o velho chefe voltou alvoroçado duma das suas viagens habituais.
- Escutai, amigos! Escutai! Boa nova para todos nós! El-rei D. Afonso III acedeu a dar foral à nossa terra!
Foi uma alegria. Houve abraços e beijos. Vivas e palmas. Dançou-se e cantou-se, como se todos fossem irmãos
Depois, o velho chefe reuniu-os de novo e falou solenemente:
- Temos de dar um nome à nossa terra... Um nome bonito, sonante, que fique para a posteridade... Qual deve ser esse nome?
As opiniões começaram logo a dividir-se. cada um dava a sua ideia. E a ideia de cada um era sempre melhor do que as ideias dos outros... Depressa se estabeleceu a barafunda, até que o velho chefe, com a sua autoridade incontestada, resolveu intervir:
- Calai-vos! Assim nada conseguiremos. A mim parece-me que só há aqui uma pessoa capaz de nos indicar um nome bonito... Sabeis a quem me refiro, com certeza. A ela devemos a ideia feliz da fundação da nossa terra. Pois que nos dê também um nome para ela.
Todos se voltaram para a rapariguita. De acordo. Esperando. Um pouco intimidade por tão grave responsabilidade, mas sempre sorrindo, como fazia nas ocasiões de perigo, a menina avançou por entre os homens e as mulheres que a olhavam ansiosamente e falou. Falou sem tremer a voz. falou como se estivesse a repetir uma lição já decorada:
- Bem... Se desejam que seja eu a dar o nome à nossa terra... parece-me que o melhor é por-lhe um nome que lembre aquela árvore a que devemos tão boa sombra... Foi a única que sempre aqui nos acompanhou, tal como o Sol e como a Lua... Eu acho portanto que a nossa terra se deve chamar Estremoços! 
Houve um momento de pasmo. E de silêncio. A rapariguita falara tão bem, tão bem que estavam todos maravilhados.
E foi afinal o velho chefe quem tomou a palavra em nome de todos:
- Muito bem!... A garota falou como uma pequena sábia... Na verdade, devemos dar à terra o nome do fruto abençoado que tanto nos ajudou. Os estremoços foram o pão nosso de cada dia... Pois também nós seremos sempre leais aos bons estremoços!
 E a terra ficou a chamar-se Estremoços - ou, melhor ainda, a Terra dos Estremoçoa, como então se designava em linguagem popular os tremoços de hoje... E o seu brasão inicial compôs-se precisamente de um tremoceiro, tendo por cima o escudo das quinas e em redor o Sol e a Lua... a perpetuar assim pelos séculos fora as palavras daquela garota de imaginação prodigiosa que falara, de facto, como uma menina sábia...
Depois, com o decorrer dos tempos, tudo se foi alterando... o nome dos estremoços passou a ser apenas tremoços... E a Terra dos Estremoços acabou por se transformar na cidade de ESTREMOZ que se ergue hoje, altaneira, em pleno distrito de Évora, como uma sentinela do Alentejo.

NOTA:- Embora eu saiba que o tremoceiro seja um arbusto de pequeno porte e, durante toda a história não se diga a idade da menina, acho que ela era um bocado desembaraçada para meu gosto no entanto, lenda é lenda e nas lendas tudo é possível.
E agora, como diria a minha neta:
Vitória! Vitória! Acabou-se a história...

1 comentário:

Anónimo disse...

E acabou muito bem, tal como começou. Hoje dediquei algum do meu tempo ás lendas aqui descritas e senti-me muito bem. Foi como se voltasse aquele tempo em que elas nos eram contadas de forma muito simples mas sempre tão agradáveis. Enfim, nada comparado ao que agora é impimgido ás crianças . Não sei se será melhor, mas não me convenço. Tambem vi vários vídeos . Sim senhor , muito bom gosto. Abraço América