Esta imagem pertence à Igreja Matriz da Golegã e foi conseguida por Sérgio Moura e recolhida em Olhares.com
Lendas de Portugal de Gentil Marques.
Ali, no meio da planície ribatejana, apenas a cinco quilómetros do rio Tejo, estende-se a pitoresca e curiosa vila da Golegã, onde se realiza, todos os anos, a famosa feira de S. Martinho.
Pois a Golegã, a da feira de S. Martinho, possui também a sua história lendária. História que vem das próprias raízes da nossa nacionalidade, tal como o povo conta e assegura. História evocada aqui, como que ao sabor do castiço fandango, alma e poesia de todo o Ribatejo.
Nos princípios de Portugal - reza a lenda remota - a Golegã ainda não existia... Por ali, havia unicamente, um terreno pedregoso e aparentemente inútil. Era a Terra do Demo, como então chamavam a todos esses descampado sem vivalma.
Mas um dia aconteceu que certa mulher, oriunda da Galiza e residente em Santarém, se meteu a caminho para tratar da vida. Era longa a jornada. Longa e penosa. Quando chegou ao local ermo onde hoje se estende a Golegã, pensou decerto o mesmo que pensavam quase todos os caminhantes que por ali passavam, ou a caminho de Santarém ou em direcção a Coimbra. Pensou que seria bom existir ali um abrigo, onde se pudesse descansar um pouco e ganhar novas forças para o resto da jornada.
Era mulher animosa, aquela. Desde criança, na sua Galiza distante, habituara-se a trabalhar e a vencer sozinha.
Olhou em redor, enquanto se retemperava, e voltou a pensar na mesma ideia. Eram terras sem dono, essas terras agrestes e abandonadas. E se ela ficasse ali? E se ela construísse ali uma pequena estalagem onde se abrigassem os viajantes?...
Se assim o pensou, melhor o fez, segundo conta a lenda. Tinha braços fortes e alma de antes quebrar que torcer. Em pouco tempo, a sua venda embora modesta, punha uma nota de vida num local outrora deserto...
A partir de então, os viajantes passaram a bendizer a ideia magnífica e tornou-se, por assim dizer, ponto obrigatório de paragem, no caminho, a Venda da Galega - como desde logo ficou designado aquele local.
A mulher multiplicava-se em esforços e em vontade para atender todos da melhor maneira. E alguns tornaram-se mesmo familiares da casa, de tanto que ali passavam e paravam. Entre eles um fidalgo desenvolto e impertinente, que requeria para si o melhor quinhão da comida e da bebida.
- Eh, Galega, chega aqui... Viste o vinho que me deitaste?
Era mais uma das recriminações do "Senhor Fidalgo". Ela suspirou molemente:
- Ah, senhor Fidalgo... vou já arranjar outro melhor... Desculpe, mas o trabalho é tanto, que mal tenho tempo para ver o que sirvo...
Ele inclinou-se um pouco para a frente e falou-lhe em tom de confidência:
- Ora, do que tu precisas Galega, é de um homem que te proteja... que te possa auxiliar em tudo isto!
Foi a vez do rosto dela se abrir numa risada:
- Onde está esse homem Senhor Fidalgo?
Voltou a suspirar e acrescentou em tom de confidência:
- Eu bem o procuro... mas nunca o encontrei até hoje.
Puxou um banco para junto da mesa e sentou-se pesadamente, sentindo que devia desabafar:
- Sabe uma coisa, senhor Fidalgo? Todos os que se oferecem para casar comigo, o que querem é explorar-me, apanhar o meu dinheiro, que eu ganho com tanto trabalho, com tanto sacrifício!
Voltou a erguer-se e rematou, já em voz mais forte:
- Ná! Nessa não caio eu... Antes prefiro viver sozinha que mal acompanhada!
Fez-se um pequeno silêncio. Ela já ia retirar-se, de regresso ao trabalho, mas a voz dele soou, fazendo-a parar:
- Pois tu não percebes o que eu digo, Galega? O que tu precisas não é de qualquer desses valdevinos que enchem a tua venda... É de um homem forte, bom, compreensivo... enfim... de um homem como eu!
Desta vez o silêncio foi mais demorado. A mulher ficou com tremores na voz, quando voltou a falar:
- O quê?... O Fidalgo?... O senhor Fidalgo... quer dizer...
Ele resolveu ser mais explícito.
- Quero dizer que posso ser o homem que tu ainda não encontraste!
Sorriu, superior e bonacheirão, e rematou, depois de beber o resto do vinho:
- Pensa bem, Galega!... Sigo viagem e, no regresso, pararei por aqui, para saber a tua resposta.
Andou uns passos para a porta e, quando se voltou, para se despedir, ela ainda estava no mesmo sítio, olhando em frente, como que aparvalhada.
Ele riu, satisfeito.
- Eh, Galega, não faças essa cara... Tudo é possível na vida!
Saiu batendo com a porta. E a mulher encontrou-se a repetir para si própria, baixinho, como que a medo:
- Tudo é possível na vida!
O tempo foi passando... Agora a Galega tinha um pensamento dominante... "Santo Deus! Eu, com um fidalgo por marido... Essa nunca me tinha passado pela cabeça... Portanto, qualquer dia poderei ser marquesa... ou mesmo rainha". E ria, ria perdidamente, esquecida dos que a olhavam sem perceber...
Mal podia ela adivinhar que o tal senhor Fidalgo há muito tempo já amadurecia o plano que só agora pusera em prática.
No regresso da viagem, sobre o tropel dos cavalos nos caminhos, ele gritava para os companheiros, numa moldura de gargalhadas:
- Vocês vão ver rapazes!... A Galega cai-me no papo e é um ar que lhe dá... E com a maquia que ela já juntou, podemos nós fazer muita coisa... Depressa, rapazes, estou desejoso de chegar.
Entretanto, tal como ele próprio dissera, tudo era possível na vida... E assim algo acontecera que viera modificar um pouco os planos da Galega. Dias antes, tinham chegado à estalagem um velho viandante e sua filha. E o velho, de aspecto respeitável e fala insinuante, ao olhar aquelas terras não escondera a sua surpresa e admiração:
- Que lugar admirável! Que grande povoação se fazia aqui!
- Ora, meu pai, não sonhe tão alto...
Mas a Galega, atraída por estas palavras, insistiu:
- Deixe-o lá menina, deixe-o sonhar... E diga-me, meu senhor: acha na verdade que se poderia daqui fazer uma grande terra?
O olhar do velho brilhou estranhamente, como se ele fosse profeta:
- Basta querer... Este é um sítio ideal, no caminho grande... Toda a gente passa por aqui...
- Lá isso é verdade, meu senhor... Às vezes até passa gente demais...
- Ora, e cada vez há-de passar mais gente, acredite... O mundo está a desenvolver-se. Ah, se eu pudesse!...
- O senhor... se pudesse... o que fazia? Diga-me...
- Quer saber? Pois oiça... Mandava construir mais casas. Transformava tudo isto numa povoação. Em vez de passar apenas, as pessoas vinham para aqui viver... E a terra havia de aumentar... Os campos seriam cultivados... O rio seria aproveitado... Ah, se eu pudesse! Mas para isso precisava de muito dinheiro... E eu sou um velho, um velho e um doente. Nada valho! Tenho gasto a vida a sonhar...
Calou-se. O seu olhar deslizava pelo espaço em frente, como se já visse erguida a povoação que profetizava. A própria Galega ficou suspensa, a pensar, a sonhar também. E, de súbito, soltando o que lhe ia no íntimo, confessou:
- Dinheiro, dinheiro bastante tenho eu... Se não fosse a proposta de casar com um fidalgo, quem se metia nisso era eu... Seria tão bom ter uma terra, uma grande povoação...
O velho continuou-lhe o pensamento.
- Com muita gente, muitos campos cultivados, muitos jardins...
- Isso mesmo! Isso mesmo!
O peito da Galega arfava de contentamento e emoção.
- Ah, se não fosse o tal fidalgo...
- E sempre vai casar com ele? - perguntou a filha do velho viandante.
A mulher hesitou na resposta:
- Sei lá, minha menina... Ele deve estar de volta, para saber o que resolvi... Vamos a ver se tomo alguma decisão até essa altura. Deus queira que sim!
Conforme se conta na lenda remota, passados dias, tornou o Fidalgo. Era uma tarde de calor. Não havia movimento nos caminhos.
Habituado à casa, o Fidalgo empurrou a porta e entrou molemente. A sala estava deserta. Sentou-se à vontade, sentindo-se já senhor de tudo aquilo. Esperou uns momentos. Como ninguém aparecesse, ele bateu as palmas com força e gritou:
- Então, ninguém atende? Morreu tudo?
Com grande surpresa do Fidalgo, apareceu uma rapariguita.
- Pronto, meu senhor!... Deseja alguma coisa?
O olhar impertinente do viandante examinou-a, de alto a baixo.
- Olá, temos cara nova... Pois claro que desejo... Quero comer e beber!
Ela ia a retirar-se, mas ele reteve-a suavemente por um braço:
- Ouve lá, cara linda: a Galega onde está?
Suavemente também , a rapariga libertou-se. E respondeu:
- Foi tratar de meu pai... Ele está muito doente... está à morte.
- Hum... Pobre pequena... tens o pai a morrer?
- Teve uma recaída senhor... Sofre muito do coração... Cansou-se na viagem até aqui...
Limpou, rapidamente, os olhos ao avental e procurou dar à voz um tom mais seguro:
- Eu vou buscar o que deseja...
Demorou pouco tempo. Absorto nos seus pensamentos, o Fidalgo nem a olhou. Começou a comer e a beber. Principalmente a beber...
E foi bebendo até se fartar. A tarde escurecia e ele voltou a bater as palmas com força e a gritar:
- Onde raio se meteu esta gente?
A rapariguita reapareceu, agora mais chorosa. Assim que a viu, o Fidalgo avançou para ela, já pouco seguro nos gestos e na voz.
- Eh, pequena... Então sempre vais ficar órfã?
- Oh, senhor, cale-se! Cale-se, por amor de Deus!
Ele segurou-a com força.
- Calo-me... mas antes quero dizer-te uma coisa: quando eu casar com a Galega, podes contar comigo...
Indignada, a rapariguita fez um gesto para se libertar, sem o conseguir.
- Pois atreve-se, neste momento?... Largue-me! mete-me nojo! Pobre galega... Ela que tem um coração de oiro...
Estoirou uma gargalhada impudica.
- Isso mesmo, pequena!... Um coração de oiro que pode valer bom oiro para nós dois... se tu quiseres...
Ela deu novo safanão, sem resultado.
- Largue-me, já lhe disse!... Mas descanse... eu vou contar tudo à Galega para ela saber o que o senhor é e o que pretende...
Irritado, o Fidalgo ergueu o braço num gesto de ameaça.
- Ai de ti, se disseres uma palavra!... Olha que sou capaz...
Mas calou-se, de repente, sem saber que fazer. Na penumbra que envolvia a sala, a Galega entrara, sem que dessem por ela. Avançou devagar, libertou a rapariga e olhou o homem bem de frente.
- Não sois capaz de nada, senhor Fidalgo. Eu ouvi tudo. Agora compreendo muita coisa...
Ele ainda tentou uma explicação:
- Eu queria apenas...
Num impulso de cólera, a mulher interrompeu-o e apontou-lhe a porta:
- Cale-se! O senhor não queria nada, o senhor não quer nada... O senhor vai sair imediatamente da minha casa, para nunca mais cá voltar... Ouviu bem? Para nunca mais cá voltar!
E sem uma palavra o Fidalgo saiu, para nunca mais voltar...
Nessa mesma noite, a morte veio buscar o pobre velho sonhador e, junto do corpo ainda quente, a Galega disse, como se fosse uma oração, à pobre rapariguita que chorava convulsivamente:
- O teu pai já não pode construir a linda terra que desejava... Mas vais tu construí-la!... Daqui em diante serás como minha filha!
E assim aconteceu, diz a lenda recontada de gerações em gerações. A povoação alargou-se, cresceu, embelezou-se, tornou-se importante. As duas mulheres, unidas pelo mesmo ideal, conseguiram transformar o sonho em realidade.
Pequena inicialmente, grande depois, a povoação sempre ficou conhecida pelos antigos, como a "Terra da Galega". E só mais tarde se transformou, pela inevitável corrupção popular, na Vila da Golegã, actualmente uma das mais típicas e progressivas de todo o Ribatejo.
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