Lendas de Portugal segundo Gentil Marques.
D Gualdim, na semiobscuridade da sua cela, encontrava-se em profunda meditação. O seu corpo recuperava da tensão em que tinha andado durante a difícil conquista de Lisboa. De joelhos em terra, com o seu rosto escondido nas mãos, o corpo levemente inclinado para a frente, parecia a verdadeira estátua da oração.
Mas, subitamente, os seus sentidos entraram em alerta. D. Gualdim estremeceu pois teve a sensação de que não estava só e, retirando as mão do rosto, ergueu-se lentamente, apercebendo-se, apesar da penumbra da presença da figura magra e alta do superior do convento.
O superior, numa voz baixa e pausada, elucidou:
- Perdoai irmão, não queria interromper as vossas orações mas... tenho algo de importante a dizer-vos.
- Falai sem receio. Estava apenas dando graças a Deus pela bênção deste silêncio depois do tremendo inferno que foi a conquista de Lisboa.
- A minha presença aqui deve-se a um desejo do nosso rei D. Afonso Henriques. O sangue ferve-lhe nas veias e quer sair de novo a campo.
- Quando precisa el-rei de mim?
- Amanhã ao romper do dia.
- Lá estarei com os meus homens.
E, silenciosamente, como chegar, o superior saiu da cela de D. Gualdim.
Só, este ficou um momento imóvel, olhando um ponto vago no espaço. Depois, os seus joelhos voltaram a roçar a terra, o seu busto esguio tornou a encurvar-se e as suas mãos, mais uma vez, cobriram o seu rosto, de olhar brilhante e feições vincadas.
Em volta, o silêncio continuou silêncio e a penumbra, penumbra.
No horizonte, uma nesga de luz impôs-se às trevas da noite. Madrugada fresca de S. João. Em massa ainda indefinida caminhava o exército lusitano. D. Afonso Henriques mandou fazer alto.
- Aproximai-vos D. Guadim!
- Dizei, Senhor.
- Vou deixar aqui o exército sob as ordens de D. Ordonho. Preciso, primeiramente de fazer um reconhecimento.
- Vós? - admirou-se o cavaleiro - Será perigoso! Ficai que eu me sentirei honrado se puder fazer esse reconhecimento em vosso lugar!
Franziu o rei as sobrancelhas espessas.
- Disse-vos que desejo fazer um reconhecimento. E não lego em ninguém esse meu desejo! Sairei do campo disfarçado e acompanhado apenas por vós, d: Gualdim...
- É grande a honra que me concedeis, Senhor! Tão grande como a responsabilidade de vos trazer, de novo, são e salvo.
- Nada temeis! Quero apenas chegar junto do castelo dos mouros antes que o sol rompa. Preciso de descer para Alcácer, e não quero deixar mal defendidas as nossas costas, com focos que poderão perder-nos. Este castelo terá de ser nosso. Mas preciso saber se chegou a hora de o tomar. Aprontai-vos e segui-me... Tenho pressa!
A areia ensaibrada rangeu sob o metal do calçado do rei português. D. Afonso Henriques olhava o castelo, sobranceiro e sereno. Tudo parecia calmo à volta.
- Parece até um castelo de mouros encantados! Não se vê ninguém...
- Custa a crer que nem tenham vigias!
- Quem sabe?
- Cuidado, Senhor! Descobri além um vulto a mover-se...
O rei de Portugal franziu as sobrancelhas, numa concentração, enquanto dizia como se falasse consigo próprio:
- Vim aqui para saber se a hora era propícia à conquista deste castelo. Mandai-me um sinal do Céu ó Deus Todo-Poderoso! Mandai-me um sinal!
D. Gualdim guardara silêncio. Mas vendo que o vulto corria agora direito a eles, preveniu:
- Descobriram-nos! Vão dar o alarme!
O rei semicerrou os olhos, numa tentativa de ver melhor na meia-luz da madrugada nascente.
- Reparai bem, D. Gualdim! O vulto que corre para nós... é o de um cão enorme!
O cavaleiro-monge concentro os seus sentidos nesse vulto que corria direito a eles e se distinguia já perfeitamente.
- Assim é, meu Senhor! Mas nunca vi um alão (nome que se dava antigamente aos cães de caça) tão forte e grande! Teremos de o matar antes que dê o alarme...
Já o cão se encaminhava em direcção ao rei de Portugal. D. Gualdim gritou quase ao mesmo tempo que puxava da espada:
- Cuidado, Senhor!
Mas D. Afonso Henriques suspendeu-lhe o gesto. O alão mal chegou junto do rei começara a lamber-lhe as mãos, dando saltos de imensa e estranha alegria. D. Afonso Henriques sorriu:
- Reparai, D. Gualdim: o alão rende-me vassalagem! Recebe-me como a um libertador, ou como se me conhecesse há muito... Deve ser este o sinal do Céu! O avanço das nossas tropas far-se-à imediatamente e o castelo será nosso. O alão o quer!
Como num eco, D. Gualdim repetiu:
- O alão quer!
E desta frase lendária que ficou para todos os tempos, resultou a conquista de mais uma praça e o nome da terra que hoje se chama Alenquer. Confirmando o que narra a lenda, as armas da vila de Alenquer são: em campo de prata, um cão grande, pardo, preso a uma árvore com grilhão de ouro.
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