28 de dezembro de 2008

Lenda da que mal pica

Lendas de Portugal segundo Gentil Marques
Chegara o Inverno. E com ele o frio. E com ele a desolação. Em certa zona das Beiras, lá para o sul de Castelo Branco, havia um pequeno povoado onde vivia Aninhas, uma rapariguinha de ar aciganado, que punha tentações nos olhos dos homens.
Ora, uma noite, parou ali um emproado fidalgo, que se dirigiu sem demora, ao chefe do povoado.
- Maldito frio!... Acendei-me a lareira, depressa!... Depressa!... Não ouvis, velho imbecil?
Mas o outro era velho, de facto. E a muita idade não lhe consentia pressas...
- Vou já meu senhor, vou já... Nós também temos muito frio...
Altivo, arrogante, o fidalgo olhou o velho de alto a baixo, num ar de soberano desdém.
- Que me interessa o vosso frio? Quero apenas que se cumpram as minhas ordens, nada mais... Compreendeis? Sou eu o dono de todas estas terras!
E quedou-se, soberbo, no meio da sala.
Foi então que, atraída pelo volume e pela força das palavras, surgiu Aninhas, a neta do velho chefe do povoado.
- Deixe lá, avozinho. Eu vou tratar de tudo...
E sem olhar o outro sequer, acrescentou num ar de mal contida ironia.
- Este senhor fidalgo, certamente, vem muito apressado... e muito friorento... Coitadinho!
O visitante voltou-se para ela, surpreendido e desconfiado.
- Onde estavas escondida?... Ainda não te tinha visto...
Avançou, sorrindo, a tentar ser lisonjeiro.
- Que lindo palminho de cara tu tens...
E quis fazer-lhe uma festa. Mas a rapariga fugiu-lhe habilmente.
- Tire s mãos, senhor fidalgo... Olhe que pode sujá-las na minha cara...
Ele disfarçou a contrariedade com uma risada.
- Já vejo que és de força... Mas isso agrada-me, pequena... Estou habituado a domesticar as minhas éguas bravas...
Aninhas fingiu que não ouvia. Limitou-se a apontar para as chamas que começavam a crepitar.
- Pronto... A lareira já está acesa, senhor fidalgo... Pode chegar-se, para se aquecer...
Esquivou-se de novo à aproximação dele, e aconselhou, num tom meio sério, meio gaiato:
- Cautela com o fogo, senhor fidalgo, cautela...
Espicaçado no seu brio, o altivo e desdenhoso fidalgo deixou-se ficar por ali mais uns dias, cortejando a bela e esquiva Aninhas.
- Posso fazer de ti uma rapariga rica e feliz...
A rapariga riu-se:
- Ora, feliz já eu sou... E rica não preciso de o ser...
E ele aproximou-se mais e segredou-lhe:
- E se eu te raptasse... se fugíssemos para o meu palácio em Lisboa?...
Aninhas pôs-se subitamente séria.
- Creio que o melhor é não tentar, senhor fidalgo...
O fidalgo empertigou-se:
- Falarei então com o teu avô... Ele será mais compreensivo... e mais esperto do que tu, concerteza!
A rapariga encolheu os ombros. De descrença, ou de indiferença mas, o fidalgo não hesitou e abalou, resoluto, decidido a levar por diante a sua vontade.
Enganou-se porém, redondamente. A sua proposta desagradou por completo ao velho chefe do povoado, que chegou mesmo a irritar-se.
- Como? Pois o senhor atreve-se? Não, nós não somos dessa gente que o senhor julga... Oiça bem: a minha neta só casará com quem ela quiser... E eu não a troco, senhor fidalgo ou lá o que é, eu não a troco por todo o oiro do mundo.
Arfando de emoção por ter ido tão longe nas suas palavras, o velho chefe terminou com um convite bem explícito:
- Porque não se vai embora daqui, senhor fidalgo?... Quanto mais depressa melhor!
O outro voltou a encher-se de soberba ofendida. Endireitou-se, muito solene e a sua voz esganiçou-se, de raiva:
- Pois então escuta, velho idiota: hoje mesmo, tu e a tua neta sereis expulsos destas terras, que são minhas... Vós é que vos ireis embora! Não vos quero ver mais na minha frente!
O velho percebeu que se excedera e que ficaria a perder pois o outro, além de mais forte e poderoso, já só tinha pensamentos de vingança.
Num reflexo de medo, exclamou com voz trémula:
- Oh, senhor!... Que será da minha neta e de mim? Para onde iremos nós? Não leveis tão longe a vossa crueldade.
Ao fidalgo enfurecido, tudo lhe parecia insulto e, ao ouvir a palavra crueldade, a sua fúria cresceu e deu um safanão no velho que caiu por terra mas, não contente com isso e para poder saciar a sua raiva ainda acertou nas costas do velho com o seu chicote.
Aninhas, atraída pelo barulho entrou e, ao ver esta cena, abriu os olhos de espanto, de piedade mas, ao mesmo tempo de ódio.
- Ah, fidalgo vilão, haveis de pagar caro a vossa ruindade!
Mas, desta vez, o fidalgo voltou-lhe as costas sem a olhar sequer. E as suas ordens soaram enérgicas e definitivas:
- Quero que esta gente abandone as minhas terras... hoje mesmo!... O velho, a rapariga e todos os seus companheiros. Não os quero ver mais aqui!... E se for necessário, empregar a força para os fazer partir.
Não foi necessário usar de violência. Todos abandonaram as velhas casas, nesse mesmo dia... Andaram muito, muito, segundo se diz, passaram fome e frio mas não renunciaram.
Um dia chegaram perto da Ermida de Nossa Senhora das Neves, estavam exaustos e, de comum acordo, resolveram ficar ali porém, outra calamidade lhes surgiu: uma praga de formigas!
O velho chefe, cada vez mais adoentado, foi o primeiro a confessar o seu desânimo.
- Oh, avozinho, não perca a fé!... Deixe lá. Temos de reagir, é preciso continuar a luta!
E voltando-se para os outros:
- Não podemos ficar aqui... Temos que procurar outro local. Desta vez, não seremos nós a procurar o local que nos interessa... Deixemos essa missão às nossas vaquinhas... Onde elas se sentirem bem, aí nós ficaremos para sempre!
Ao soarem as avé-marias na ermidinha distante, soltaram as vacas e deixaram-nas ir, à vontade pelos campos fora...
Conta-se que foi Aninhas a primeira a chegar ao local onde as vacas pastavam tranquilamente.
- Venham todos! Isto é magnífico... Parece um céu aberto!... Vejam como as nossas vaquinhas estão contentes... Sabem porquê? Porque aqui as formigas são bem poucas... E qualquer destas formigas, como podem ver, mal pica...
No meu do contentamento geral, a voz do velho chefe, que todos respeitavam, ergueu-se segura e profética:
- Pois já que assim é... esta nossa terra há-de ficar a chamar-se Malpica!

E desse modo nasceu na Lenda e passou à História a pitoresca e bonita aldeia da Beira baixa, que primeiramente se chamou apenas Malpica - e agora e chama Malpica do Tejo.
E consta ainda, na memória do povo, que o tal fidalgo atrevido e enfatuado veio a acabar de morte horrorosa, mordido e envenenado por umas formigas terríveis, que ninguém chegou a saber de onde tinham vindo...

3 comentários:

Domingos Diogo Correia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Domingos Diogo Correia disse...

A lenda da minha terra está um pouco adaptada, com a "novela" da Aninhas... mas é, sem dúvida, uma lenda excelente e que explica o nosso topónimo... umas das variantes da lenda explica a mudança da aldeia recorrendo aos constantes ataques espanhóis e às pragas de formigas - o que é mais verosímil. No entanto, os meus parabéns ao autor, como malpiqueiro, pelo excelente registo do conto!

José Vicente disse...

A lenda assim contada está pitoresca, mas as lenda que nos foi contada pelso mais velhos , nunca falaram em formigas.

A LENDA DO NOME DE MALPICA (MALPICA DO TEJO A PARTIR DE 1952)
Há muitos, muitos anos, no monte de São Domingos, havia uma povoação. Um dia um pequeno grupo de espanhóis, valendo-se da ausência dos homens nos trabalhos das terras, invadiram a aldeia para provocar as mulheres e pilhar tudo o que tivessem à mão. Mas esta invasão era uma ratoeira para atrair os homens da aldeia para uma armadilha. Os homens alertados pelos gritos das mulheres e crianças, rapidamente ocorreram em seu socorro e perante a fuga dos malfeitores lançaram-se em sua na perseguição sem quaisquer precauções de defesa dado serem tão poucos os invasores.
Os fugitivos rapidamente alcançaram um grande sobreiro que havia junto duma pequena ribeira que passava não muito distante da aldeia e subiram para o mesmo deixando-se observar pelos perseguidores. Os homens da aldeia tendo alcançado o sobreiro e preparando-se para apanhar os ladrões foram surpreendidos com dezenas de espanhóis que se encontravam escondidos nos arbustos, armados com paus, facas e outros objectos e aí mataram todos os homens, ficando a aldeia reduzida a crianças, mulheres e idosos.
Foi então que os anciães, com receio de novas invasões e sem homens novos para os defenderem, resolveram mudar a povoação para um lugar mais seguro.
Mas mudar para onde? Lembraram-se então de espantar as vacas (naquela época todos os animais, eram da comunidade) e ir atrás delas, onde pernoitassem ali ergueriam a nova aldeia. E assim seguiu o povo atrás das vacas com todos os seus utensílios e restantes animais.
As vacas foram andando e pastando até que, já lusco-fusco, encontraram uma fonte com água muito fresca e depois de terem bebido dessa água, deitaram-se num terreiro um pouco mais abaixo e aí pernoitaram.
Observando o local e verificando que não se tinham afastado da fronteira disseram os anciães, “se mal estava mal phica”. (F escrevia-se com PH). Mas não voltaram com a palavra atrás e ali construíram a nova aldeia.
Como o sítio não era muito bom resolveram construir um Cosso com casas altas com três entradas fechadas com grandes portões. Uma para o lado da igreja, outra para o lado do Reduto e outra para o lado do Lombinho com a fonte no centro do largo. Esses portões só eram abertos ao amanhecer e ao por do sol, após identificação visual através das pequenas janelas existentes nas traseiras das casas altas.
No lugar onde as vacas se deitaram construíram a Igreja.
E foi assim que nasceu a nova aldeia a que deram o nome de MALPHICA e o tempo se encarregou de perder o H e ficou
MALPICA.


Notas:
Nome Religioso São Domingos de Malpica
Hoje Malpica do Tejo
No Monte de São Domingos ainda existe uma ermida e vários vestígios de povoação e aí se comemora a Segunda-Feira de Páscoa em honra de Nossa Senhora das Neves.
O Cosso manteve até quase os finais do Século XX os traços relatados, excepto os portões. Hoje só a entrada para o Lombinho é ainda estreita.
A fonte ainda lá está (fonte velha) e foi, antes de chegar a água canalizada, finais do Século XX) o local onde o povo se abastecia de água potável.
Antes de haver toponímia (ruas com nomes) havia o Cosso que ficou Largo do Corso e o Reluto que ficou corrigido para rua do Reduto.