Lendas de Portugal, segundo Gentil Marques.
aqui surge uma lenda estranha e impressionante. Estranha, pela sua própria concepção que é muito diferente de outras histórias do género, impressionante por evocar o mundo do sobrenatural, sempre tão próximo e tão afastado do nosso pensamento.
Escutei esta história quando era pequenito e irrequieto, numa noite de tormenta. A certa altura, nem sei porquê, disse que tinha visto uma caveira a espreitar pela janela, iluminada por um relâmpago. Foi o suficiente para que a velha criada, a Maria do Rosário, começasse a tremer e a benzer-se e fosse, numa corrida fechar a janela. Depois, tremendo sempre e benzendo-se, contou-me a história que eu vou tentar reproduzir. A história da sua terra...
Há muitos, muitos anos, onde hoje fica situada a freguesia de Almaceda, existiam apenas, enormes extensões despovoadas. E por ali costumava correr no seu cavalo favorito, um fidalgo de nome Rodrigo - jovem, rico mas bastante aventureiro. Este fidalgo já não tinha os seus pais e vivia com sua irmã, D. Madalena, numa casa senhorial, rodeados de criados. Tudo, porém, o aborrecia excepto aqueles passeios pela manhãzinha ou ao entardecer, nos dias em que as chuvas não vinham alagar os campos. E, quando o tédio começava a incomodá-lo fugia para a Corte ou para onde pudesse divertir-se e gastar o seu dinheiro...
Certa manhã de Março, mal acabara o sol de surgir no horizonte, D. Rodrigo e D. Madalena montaram a cavalo e saíram para o seu habitual passeio. Ainda não estavam longe de casa quando, de súbito, o fidalgo estacou a montada, olhando fixamente um ponto. D. Madalena, apercebendo-se de que seu irmão ficara para trás, parou também o cavalo e perguntou curiosa:
- Que estás a ver?
- Ou eu estou ainda a sonhar - responde o irmão - ou junto àquele arbusto está uma caveira!
- Rodrigo! Que ideia a tua! Não brinques com essas coisas!
- Não estou a brincar. Ora repara! Vês... além?
O coração da jovem bateu apressado.
- Sim... Parece que, na verdade...
D. Rodrigo tornou-se brincalhão.
- Vamos! Coragem!... Desce do teu cavalo e vem comigo cumprimentar a caveira!
- Rodrigo! Por favor! Tem mais respeito pelos mortos!
- Respeito? - disse D. Rodrigo rindo - Queres ainda mais respeito do que estou a demonstrar? Chegamos ao apuro de interromper o nosso passeio, para lhe dirigir um cumprimento!...
- Rodrigo! Não gosto dessas brincadeiras, já te disse!
- Grande medrosa! Nem pareces minha irmã! Porque tremas assim? É apenas uma caveira que ali está!
Olhando de soslaio, Madalena inquiriu a medo:
- Mas donde teria vindo?
D. Rodrigo soltou uma gargalhada.
- Minha tonta! Queres saber donde veio aquela caveira?... Do cemitério, com certeza! Aquilo por lá deve andar muito aborrecido e ela resolveu dar um passeio, como nós!
- Rodrigo! Não brinques mais!
- De que tens medo? Aquilo são ossos do corpo humano, nada mais.
- Bem sei. Mas devemos ter respeito por eles... Vamo-nos embora! Não me sinto bem aqui...
- Pois vamos! Antes, porém, de abandonarmos o local, manda a etiqueta que desejemos a esta caveira um bom dia...
- Rodrigo! Por favor!
O Tom suplicante da irmã irritou-o. E resolveu contrariá-la, continuando em tom de mofa:
- E já agora... se, na verdade, a caveira saiu do cemitério por estar aborrecida... devo lembrar-lhe que, às vezes, também estou aborrecido... E, como resido aqui perto, tenho muito prazer em convidá-la para jantar, hoje, comigo!
Madalena tapou o rosto com as mãos, numa crise de choro.
- Que heresia, Rodrigo! Que heresia!
E esporeando o cavalo, a jovem amazona voltou para casa, deixando atrás de si as gargalhadas impertinentes do irmão, que ria do seu pânico...
Contudo ainda a donzela galopava à vista, quando aos ouvidos de D. Rodrigo soou uma voz cava e pausada, vinda não se sabia de onde:
- Cavaleiro! Não quero de forma alguma desapontar-te... Se isso te diverte, podes estar certo que, esta noite, não esquecerei o teu convite...
O jovem fidalgo olhou em volta. Ninguém, além dele próprio e da figura vaga da irmã que continuava galopando, a perder-se na distância...
O riso morreu-lhe na garganta. Seria uma alucinação dos seus sentidos? Sentiu-se inquieto. Estava já arrependido da sua brincadeira macabra. Bem lhe tinham recomendado mais respeito pelos mortos...
Conforme reza a história, D. Rodrigo ficou-se ainda uns momentos a olhar a caveira no solo. Sem voz. Sem gestos, De súbito, montou o seu cavalo e galopou em direcção ao mosteiro mais próximo, onde contou o sucedido. Os frades julgaram que ele não estaria no seu juízo perfeito e, apenas lhe deram uma pequena cruz para colocar no peito, pois isso o livraria dos ataques do Demónio.. mais reconfortado, D. Rodrigo voltou ao solar onde a irmã o esperava, transida de pavor.
- Tardaste tanto! São quase horas de jantar e eu morro de medo!
desta vez ele não brincou.
- Sossega! Tudo correrá bem. Trago comigo esta cruz dada por um dos frades do mosteiro...
- Ouve, Madalena! Se alguém estranho vier jantar hoje connosco, teremos de o receber como bons anfitriões. Já mandei colocar mais um talher na mesa. E avisei o nosso criado José de que a visita esperada hoje, vai causar-lhe grande pasmo.
A jovem olhou o irmão, num misto de assombro e medo
- Tu... tu pensas que, na verdade... alguém estranho virá aqui?
Ele acenou com a cabeça, afirmativamente, deixando a irmã mais trémula.
- Vai para o teu quarto. hoje dispenso-te ao jantar.
Madalena agarrou-se a ele e disse-lhe:
- Nem que morra de medo, hei-de ficar contigo! Não te deixarei sozinho!
Umas pancadas fortes na porta da entrada, interromperam a conversa.
- Aí está a nossa visita! É pontual!
- Benze-te Rodrigo! Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos...
Um grito do criado José interrompeu a oração de Madalena e logo uma voz cava, soturna, se fez ouvir.
- Diz a teu amo que sou o seu convidado desta noite.
tentando uma segurança que não sentia, o dono da casa ordenou:
- Entre, por favor! Tem o seu talher junto ao meu. Como vê... esperava-o!
E diz z mesma história remota que um vulto sem rosto entrou pelo salão. D. Madalena caiu numa cadeira. D. Rodrigo chamou a si todas as suas forças para se mostrar sereno.
- Queira sentar-se...
Mas a voz cava e soturna voltou a fazer eco no salão:
- Não vim aqui para cear contigo neste palácio. Vim apenas buscar-te!
D. Rodrigo empalideceu.
- Não compreendo...
- Quero que me acompanhes à minha morada.
- E... onde mora?
- Muito perto da Igreja. Vem comigo. Sou eu, agora, quem te convida. Preciso falar-te!
Reunindo todas as forças, D. Matilde pediu:
- Não vás, Rodrigo! Pode ser uma alma perdida!
A voz cava soou, de novo, mas desta vez num tom zombeteiro:
- Acaso terás medo, jovem fidalgo? Tu, o valente aventureiro de tantas noites de orgia?
- Meu irmão! Manda-o embora! Manda-o com Deus!
Mas D. Rodrigo sentiu que não podia fugir. Que não devia fugir. Que não queria fugir. Colocou a sua capa sobre os ombros e saiu, deixando a pobre Madalena chorando e cheia de medo...
Quando a porta do palácio se fechou sobre os dois vultos, o frio cortante da noite veio bater no rosto de D. Rodrigo. Não havia luar. Os gritos das aves nocturnas ouviam-de de vez em quando, soando como alerta. O jovem fidalgo tinha um peso enorme no peito, mas tentava não mostrar medo.
Começaram a andar. O vulto sem rosto à frente. D. Rodrigo um pouco atrás. Nem uma única palavra trocaram pelo caminho. Durante a caminhada, o jovem recordava o seu passado. Passado breve mas cheio de nódoas. E diz-se que o jovem D. Rodrigo, nessa hora, prometeu a Deus modificar-se, se não lhe acontecesse mal algum...
Chegados ao portal da Igreja onde apenas se adivinhavam as cruzes do cemitério, D. Rodrigo, involuntariamente, estacou. Então o vulto sem rosto voltou a falar:
- Entra na Igreja comigo! Conseguimos ser pontuais.
Efectivamente, no relógio da torre batiam pesadas e soturnas doze badaladas.
O jovem fidalgo voltou a hesitar. Mas já o vulto sem rosto gritava na noite escura:
- Entra! Não há tempo a perder! Esperam-me lá em baixo e já sabem que vem comigo um companheiro.
Os pensamentos chocaram-se no cérebro de D. Rodrigo. A fim de ganhar tempo, D. Rodrigo perguntou:
- Para onde me leva?
Então soou uma gargalhada. gargalhada horrível, lancinante que se ficou a repercutir no espaço. Depois, o vulto falou de novo, enquanto empurrava suavemente, o jovem fidalgo, obrigando-o a entrar na Igreja deserta:
- Vais conhecer o meu palácio. Vês esta lousa aberta? É a minha morada... Vamos, desce!
O moço fidalgo compreendeu que tinha que reagir. Estava à beira do abismo. Revoltou-se enérgico, juntando os restos de coragem:
- Para que hei-de descer?
- Tens medo?
- Não! Quem foi sepultado na igreja não pode ser uma alma penada!
Segunda gargalhada estridente fez fugir os pássaros nocturno que lá se tinham refugiado.
- Nessa parte é que reside o teu engano! O teu e o dos que me sepultaram. Julgaram-me bom em vida... Mas só Deus conhecia os meus grandes erros. Por isso Ele me condenou!
- Condenado?
- Sim! Agora já que troçaste de mim, quero que desças para saberes como é a minha ceia!
- Não vou! Deus proíbe-me que me enterre vivo.
- Se não fosse a cruz que trazes ao peito, eu te obrigaria a descer! E lá em baixo, sofrerias comigo o fogo da redenção!
Para si próprio, o fidalgo murmurou uma prece em que punha toda a sua alma.
- Que Deus me acuda!
Instantaneamente, o vulto sem rosto pareceu acalmar-se. A sua voz soou com mais brandura:
- Fui na terra um aventureiro como tu, sem respeito pelas coisas sagradas. Um homem fútil e leviano. Só fazia caridade por ostentação. Que a minha pena te sirva de alerta! cada vez que encontres algum corpo sem vida, lembra-te da alma que o abandonou, pois ela poderá precisar das tuas orações. Em vez de escarneceres... reza! Quando se te depare um osso humano, enterra-o com carinho em terreno sagrado, orando pelo eterno descanso daquele a quem pertenceu! Que a tua alma ceda à caridade e à compaixão pelos mortos! Que a tua alma ceda à caridade que estou a transmitir-te, pois começo a ver luz no meu caminho! Alguém está orando por mim. Alguém, neste momento faz promessas para me libertar!... É tua irmã! Por isso te dou um bom conselho: Vai-te e não esqueças quanto te disse, se quiseres também salvar-te! Que a tua alma ceda ao teu orgulho que foi teu apanágio, para que nela ocupe lugar o amor ao próximo!
A voz cava e soturna deixou de se ouvir. O vulto sem rosto desapareceu pela lousa aberta. Na Igreja o silêncio era pesado. Então, D. Rodrigo começou a correr para casa. A correr e a rezar. E a repetir, no meio das suas orações, numa estranha obsessão:
- Que a tua alma ceda! Que a tua alma ceda!
Chegando à porta do solar, D. Madalena, ali o esperava, sempre a rezar, caiu-lhe nos braços, chorando de comoção.
- Graças a Deus! Graças a Deus voltaste!
Como ele amiúde repetia a mesma (Que a tua alma ceda!) o povo das redondezas começou a tratá-lo por Almaceda.
Tempos depois, já refeito do choque, reorganizou a sua vida. Distribuiu parte das suas terras pelos que vinham ao solar pedir abrigo e, forem essas pessoas vindas das mais variadas terras que resolveram começar a chamar àquelas terras "Terras do Almaceda", mais tarde apenas Almaceda, em homenagem àquele fidalgo que tanto os ajudava.
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